Férias bizarras

“Não é verdade que somos uma família bizarra, Jasmim?”. Estávamos na estrada quando, do nada, meu filho de quatro fez essa pergunta para a irmã, três anos mais velha. Dias depois a voz infantil ainda ressoava na minha mente. O que terá feito a indagação surgir na sua cabecinha? Será que somos gente bizarra?

Até hoje não tive coragem de gastar dinheiro comprando móveis e moro numa casa onde caixas de plástico fazem as vezes de gavetas. Quando vou ao Brasil, fico encabulada ao entrar nos apartamentos das amigas da mesma idade. Elas me parecem tão mais adultas do que eu, com suas casas decoradas, empregadas e babás de uniforme. Será que é por isso que somos uma família bizarra? Pode ser também porque não nos casamos. Minha filha vira e mexe me pergunta a razão disso. Como explicar que pra mim casamento é apenas uma forma de tornar a separação mais burocrática? Talvez seja porque não temos carro e minha solução para levar os filhos à escola foi comprar uma patinete pra cada um, inclusive para mim mesma. É um dos melhores momentos do dia, além de saudável, econômico e ecológico, por que nos privar ?

Ao contrário do que meu filho constatou, de uns tempos pra cá tenho me sentido cada vez mais normal. É irônico: a bizarrice dos tempos pandêmicos está me transformando numa pessoa comum. Quando comentei com uma amiga mais velha que desde o confinamento estou com vontade de ter um carro e uma casa no campo, ela retrucou, dando risadas, que estou me aburguesando. Tive que concordar. Desde que a agência de locação de carros me deu um modelo superior ao que havíamos reservado, eu, que nunca dei valor pra essas coisas, ando sonhando com um carrão! Parece mentira mas é verdade: duas vezes depois de entrega-lo vi exatamente o mesmo carro, com a mesma placa, estacionado em frente ao meu prédio. Quais as chances disso acontecer? A primeira viagem que fizemos no começo do desconfinamento também me deixou querendo ter uma casa de campo. Durante três semanas alugamos uma casa antiga, renovada com bom gosto, respeitando a arquitetura da época e decorada com objetos encontrados em feiras de antiguidades. A percepção das crianças é mesmo muito diferente da nossa. Para eles, essa casa, que além de tudo tinha um jardim imenso que dava para um pasto de vacas, virou a “casa das aranhas”. A primeira vez que ouvi os filhos falando assim quase não acreditei, é tão redutor ! Mas foi isso que os marcou : as pequenas aranhas nos quartos e banheiros. Eles não sossegavam enquanto o marido não matava todas. Eu morria de dó, elas eram inofensivas, não havia a menor necessidade de eliminá-las. Mas esse virou o ritual macabro dos três antes de dormir.

Depois da “casa das aranhas” e das duas semanas de aulas entre o confinamento e as férias de verão, que recebi como um presente dos céus, alugamos outro carro. Dessa vez não houve upgrade, tive que me acomodar com o modelo abaixo do primeiro. Foi como viajar de classe econômica depois de ter voado de executiva. Mas o carrinho funcionou bem e nos levou sem problemas até nosso primeiro airbnb, uma casa sem charme, com um quintal pequeno e nenhuma vista. Dava pra ver que a proprietária renovou a casa com o intuito de alugá-la. Me senti como naquele filme, “Querida encolhi as crianças”, só que ao invés de nos perder no jardim, nós, seres minúsculos, circulávamos dentro de um catálogo da Ikea. Comentei isso com minha irmã no telefone, ela disse para eu parar de reclamar. É verdade que nessa casa não fiquei nem um pouco alérgica, contrariamente ao que aconteceu na “casa das aranhas”. Meus filhos também aprovaram a locação, que apelidaram de “a casa perfeita”. Aqui, as aranhas foram substituídas por moscas e a caça aos insetos pôde continuar, para grande alegria das crianças.

Estávamos no caminho entre a “casa perfeita” e nosso próximo airbnb quando o caçula buscou junto à irmã confirmação da evidência: somos uma família bizarra. A terceira casa que alugamos era mesmo bizarra. Ficava lá onde Judas perdeu as botas, logo após um charmoso vilarejo fantasma, na fronteira entre a Bretanha e a Normandie. O anúncio dizia que era perto de tudo, mas na verdade era longe de tudo. Tão afastado da civilização que não tinha internet e o telefone funcionava mal, com apenas um pauzinho de sinal, e somente quando colocado em cima da geladeira. A França estava desconfinada, mas sem querer demos um passo a mais no confinamento: além de não ver ninguém, perdi a possibilidade de conversar pelo WhatsApp e fazer aulas de yoga via Zoom. O jardim era imenso, embora arranjado com um gosto particular, com uma estrada de pedrinhas levando do portão até a entrada da casa e iluminado por antiquadas luminárias redondas que davam um ar kitsch à propriedade. Ao entrar tive a sensação de invadir o lar de uma vovozinha. Papéis de parede florais desbotados nos quartos, panos de prato e pesos de porta em forma de galinha na cozinha, cujas gavetas estavam abarrotadas com utensílios mais ou menos inúteis, sem mencionar as caixas de chá vazias usadas para fins decorativos e os bastões mergulhados em vidrinhos de perfumes espalhados em todos os cômodos. Essa casa era o contrário da anterior. No princípio, quis voltar para o catálogo funcional e minimalista da Ikea, mas depois me acostumei e até curti a casa, que as crianças nomearam “casa labirinto”, em função do longo corredor e das diversas portas, dentre elas duas permanentemente trancadas. Aqui tinha bastante pernilongo. Dessa vez até eu entrei na dança e me pus a matar os bichos, porque ninguém merece ficar todo picado.

Não sei se somos uma família bizarra, mas as férias foram sim bizarras. Normalmente, nessa época meu pai vem nos visitar e viajamos todos juntos para uma praia na Catalunha, nossa Meaípe. Esse ano, ele está longe dos netos num confinamento que se prolonga, a Espanha está reconfinando e nós não conseguimos pensar em nada melhor do quê alugar casas no mato via airbnb. Além de espaço para as crianças correrem longe dos vizinhos intolerantes, estávamos atrás de ar puro. A piada foi que nossa última destinação, nos confins do mundo, ficava no departamento onde os casos de covid explodiram na França, a Mayenne. Ri muito dessa ironia do destino, o marido um pouco menos.

Vamos passear no bosque, enquanto o Seu Lobo não vem

Escrevo essas linhas da casa que alugamos assim que chegamos em Paris, depois das três semanas que passamos no campo durante o confinamento. São mais de dez horas da noite e o marido acaba de pegar meu lugar no quarto ao lado das crianças. Até hoje elas não adormecem sozinhas…

Dez e meia. Mal escrevi o parágrafo acima e precisei retornar ao quarto das crianças. Elas estavam tendo uma briguinha chata, dessas em que cada um quer ser o último a falar alguma coisa, quando o pai perdeu a paciência e gritou. O caçula levantou da cama, dizendo que ia contar para a mamãe que o pai o xingou. O pai me chamou para eu xingá-lo também. Eu entrei no quarto e peguei o menininho que não parava de chorar no colo, numa tentativa de acalmá-lo. O marido me olhou possesso. A filha mais velha interveio: “Mamãe, no seu lugar eu xingava ele. Você está se deixando hipnotizar pelo choro do Enzo”. Minha filha de sete anos sempre foi mais lúcida do que eu… O marido saiu do quarto esbravejando, o pequeno não parava de chorar, queria que eu lavasse com água e sabão o machucado invisível que o pai fez na sua perna. Como não cedi, exigiu então mais uma historia. Eu já havia lido dois livros, não me imaginei abrindo outro. Acabei saindo do quarto. Agora eles estão sozinhos lá dentro com a porta fechada, a menina tentando dormir, o irmão me chamando, o marido ao meu lado dizendo: “você não vai”, e eu aqui pensando que nem depois das dez da noite consigo ter um minutinho para mim…

Outro dia na porta da escola encontrei uma conhecida que é divorciada e tem dois filhos mais ou menos da idade dos meus. Ela me disse que amou o confinamento, que foi a melhor fase da sua vida, que era maravilhoso acordar na hora que queria, não trabalhar e passar o dia inteiro com os meninos. Quando ouço essas coisas fico pensando que tem alguma coisa errada comigo, que desejei com fervor os oito dias de aulas das crianças antes dos dois meses das férias de verão, que aspiro por essas duas horinhas diárias para ler, escrever, falar no telefone, fazer qualquer coisa que não tenha nada a ver com crianças.

Ufa, o marido voltou para o quarto dos filhos, o Enzo se acalmou, acho que agora vai. Mais meia horinha deitado no chão lendo e elas dormem, com sorte até amanhã. Comprei um kindle que permite ler no escuro quando a mais velha ainda era bebê, para ficar ao lado dela sem sentir que estava perdendo tempo. Acabou virando um hábito, perdi a conta dos livros que li enquanto punha as crianças para dormir. Só para dar um exemplo, li Guerra e Paz inteiro deitada no colchão ao lado da cama dos filhos. Outro dia achei na estante um livro que tinha recomendado para o marido e me assustei com o calhamaço. Era o “A mulher foge”, do David Grossman, um dos livros que li no kindle enquanto esperava os anjinhos caírem no sono. Como li em português, o marido comprou a versão francesa. Não me dava conta do tamanho do objeto!

Agora ficou tarde, já estou com sono e me desviei completamente do que havia pensado escrever nesse post… Deixo então registrado que as crianças amaram as duas semanas de aulas depois do confinamento, que eu não fiz praticamente nada nesses dias, contrariando meu objetivo de ser produtiva, e que no primeiro dia de férias alugamos um carro e voltamos para o campo, porque criança precisa mesmo é de espaço. Não estamos muito longe de Paris, mas estamos aproveitando para visitar uma região que não conhecíamos, passear nas florestas, comprar produtos locais nas feiras dos diferentes vilarejos, enfim, viver a vidinha do campo francês em todo seu esplendor. Inclusive adquiri uma competência nova: tirar carrapatos. Descobri na farmácia um pequeno instrumento especial para tira-los sem que nos piquem, uma super invenção, fiquei me perguntando se existe isso no Brasil.

E assim vamos passeando no bosque enquanto a segunda onda do Covid não vem…  Tudo indica que virá. Acho que teremos que aprender a viver com esse vírus, a socializar à distância… que tristeza. O marido continua preocupadíssimo. Ele acompanha de perto as notícias, nada otimistas: o vírus realmente sobrevive no ar e deixa sequelas em que o teve, inclusive nos casos assintomáticos. Eu prefiro não pensar nisso. Já sofro com as notícias que me chegam do Brasil, onde ninguém sabe no quê acreditar, onde as pessoas que se confinam se sente impotentes e solitárias não só fisicamente, mas também na sua ação responsável. Onde os pretos e pobres continuam morrendo mais, agora não somente pelas mãos da policia, mas também pela ação do vírus. Onde os índios, quinhentos anos depois do descobrimento, são mais uma vez contaminados por uma doença externa, sem proteção, sem que a maior parte da sociedade se importe. Onde canalhas aproveitam da balbúrdia para aumentar o desmatamento e a destruição de tudo o que há de precioso no nosso país… E eu aqui, escrevendo sobre as dificuldades da maternidade, no conforto de uma casa de campo francesa.

Vem chegando o verão, um calor no coração

Segunda-feira as crianças voltaram às aulas. Sim, domingo, 14 de junho, o presidente anunciou em rede nacional que na semana seguinte todas as crianças retornariam à escola, obrigatoriamente. Escutei essas palavras com um misto de alívio, alegria, surpresa e consternação. As primeiras sensações são óbvias, estava com os filhos desde o começo de março e não via a hora de ter um tempinho para cuidar da minha própria vida. Surpresa porque eu não imaginava mais que uma volta às aulas fosse possível, duas semanas antes das férias de verão. Já havíamos inclusive marcado um piquenique de despedida com a turma da minha filha. E consternação porque sabia que os diretores, professores e demais funcionários das escolas estavam tomando conhecimento da volta às aulas, com caráter obrigatório, ao mesmo tempo que a gente!

Minha filha e eu acolhemos a notícia com alegria. O mesmo não pode ser dito do meu filho de quatro anos. Ele ficou grudado em mim durante toda a quarentena e não estava com pressa de reganhar um pouco de autonomia. Tentou de tudo pra não ir pra escola. “Mas tem o coronavírus”, foi seu primeiro argumento. Como não funcionou, declarou que estava doente e “as crianças doentes não vão pra escola”. Depois avisou, já nervoso, que tinha um cartaz na porta da escola falando que é proibido ir à aula. Por fim, prometi levar um kinder ovo com surpresa para o lanche. O rapazinho, que é chocólatra, não resistiu. Sou contra essa tática de recompensa, ainda mais com um produto industrial cheio de açúcares, mas o tempo estava passando e ele se recusava a pôr roupa. Eu não podia correr o risco dele perder um dos oito dias de aula antes dos dois meses de férias.

Assim que fiquei sabendo que as aulas retomariam, anulei o Airbnb que tínhamos reservado para o final de junho. A volta do campo para a cidade, da casa com jardim para o apartamento com vizinhos, foi tão radical que mal colocamos os pés aqui, começamos a procurar outra casa no mato para alugar. O sentimento de voltar para uma metrópole classificada “zona vermelha” do covid após semanas confinados com as vacas fica claro na experiência de uma amiga. Ela, o marido e os dois filhos correram para a casa de campo tão logo o presidente anunciou o começo do confinamento, em março, antes que o impedimento de nos afastarmos mais de um quilômetro do domicílio entrasse em vigor. Ficaram em quarentena durante dois meses e meio até que, por motivos profissionais, precisaram voltar. Ao chegar desceram do carro e, enquanto tiravam as malas do bagageiro, a filha de sete anos correu para digitar o código de entrada do prédio. A mãe falou para a menina tirar a mão dos botões, o que ela fez, levando os dedos instantaneamente à boca. A ideia dos coronavírus indo dos imundos botões ao interior da criança enlouqueceu minha amiga, que agarrou os bracinhos da menina e a sacudiu, berrando e chorando ao mesmo tempo. “Tive uma crise de nervos. Explodi como não explodia há anos, desde antes de ser casada, desde antes de ter filhos”, ela me contou, virando-se em seguida para a filha e pedindo perdão mais uma vez.

O marido e eu também sentimos essa apreensão quando chegamos em Paris. A princípio foi quase chocante ver tantas pessoas na rua, no metrô, no bosque, no supermercado. Gente de máscara, gente sem máscara, gente usando a máscara abaixo do nariz, abaixo do queixo ou dependurada em uma orelha. Gosto de observar a criatividade das máscaras de tecido, suas diferentes formas e cores. Mas vejo também muitas máscaras descartáveis. Essas me dão nervoso, principalmente desde que li que levam 400 anos para se decompor. Difícil acreditar que a natureza vai sair ganhando com a pandemia.

O desconfinamento traz sentimentos antagônicos. Por um lado, temo uma segunda onda da doença e me sinto segura quando vejo as pessoas de máscara. Ontem mesmo li que 88% das mortes por covid19 na França poderiam ter sido evitadas caso as pessoas tivessem usado máscara desde o princípio. Por outro, quero festejar a chegada do verão e o fim da epidemia, passear pelas ruas respirando livremente. Adotei um meio termo: uso a máscara nos comércios e transportes, mas não na rua. Confesso que algumas vezes esqueci a máscara em casa e fiz compras sem… Numa dessas vezes, como tinha acabado de lavar as mãos e tenho eczema nos dedos, hesitei em usar o álcool gel disponível na entrada do supermercado (antes um segurança colocava o gel na palma das mãos de cada pessoa que entrava. Agora é responsabilidade de cada um fazê-lo). Enquanto ponderava se limparia ou não as mãos novamente, uma moça passou na minha frente e entrou, apressada. O velhinho atrás de mim resmungou: “ela não usa máscara e não lava as mãos!”. Percebi o medo no comentário dele e passei o gel, envergonhada por estar sem a máscara…

Nesses primeiros dias de verão, oscilamos entre normalidade e tempos de epidemia. Às vezes relaxamos um pouco e em seguida nos arrependemos. O desconfinamento tem sabor doce-amargo. Aos poucos estou revendo os amigos. À distância, sem beijinhos nem aperto de mãos. Progressivamente. Primeiro conversei com um conhecido que cruzei no bosque, de longe. Depois almocei na varanda de um restaurante com uma amiga, tomando cuidado para que nossas cadeiras não ficassem muito próximas. No dia seguinte aceitei um convite para jantar na casa de outra amiga. E amanhã festejo meus quarenta anos com um pé dentro e outro fora da quarentena.

O marido está se desconfinando ainda mais vagarosamente do que eu. Estamos juntos há quinze anos e temos dois filhos. Essa semana ele tinha um trabalho difícil para fazer, então resolvi agradá-lo. Como precisava passar as máscaras de tecido, tirei do fundo do armário a mesa de passar roupa, presente da sogra, claro, e me ofereci para passar uma camisa. Estava toda orgulhosa passando a camisa de linho branca quando meu filho chamou. Fui ajudá-lo e expliquei o que ele me perguntou com paciência, me sentindo uma excelente mãe e esposa. Quando voltei para a mesa de passar, encostei o ferro quentíssimo na camisa preferida do marido e senti o cheiro de queimado. Levantei o ferro e vi duas imensas marcas marrons! Desnecessário dizer que a camisa foi direto para o lixo. Dois dias mais tarde quis agradá-lo novamente, dessa vez para o seu aniversário. Fiz um bolo e, como ele lê muito, decidi comprar um livro. Contei para a livreira que estava procurando um presente para uma pessoa que aprecia autores como Philip Roth, Jim Harrisson e Jonathan Frazen. Ela respondeu que tinha o livro perfeito e me propôs uma autora inédita. Folheando o livro rapidamente vi que, na orelha, a escritora era comparada à Roth e Frazen. Foi o suficiente para me convencer. Comprei sem ao menos saber do que se tratava a história, crente que o marido adoraria a descoberta. Ele rasgou o embrulho satisfeito e começou a ler a contracapa em voz alta: “Rachel Fleishman larga Toby Fleishman, depois de quinze anos de vida comum e dois filhos. Mas como Toby pode aceitar uma vida de pai solteiro quando pensava viver com a esposa até a morte?”. Quase morri, parecia piada de mau gosto. “Tem certeza que você não escondeu uma faca no livro?”, ele perguntou, enquanto ríamos da trapalhada. Acho que vou deixar essa ideia de agradar o marido pra lá. É como querer ser uma boa mãe, sempre dá errado.