Vida chata

Hoje recebi uma mensagem de uma amiga perguntando como estão as coisas por aqui. Respondi sem pensar: “A vida está bastante chata, mas fora isso tudo bem”. Arrependi na hora, Polyanna ficaria decepcionada comigo… Minha amiga estava sendo atenciosa, eu poderia ter sido mais gentil. Quer dizer, para um francês não há nada errado com minha resposta. Mas a amiga talvez não esteja familiarizada com as réplicas diretas e mal-humoradas dos parisienses; espero que não me leve a mal… Lembro quando minha mãe estava viva e me levava ao salão assim que eu botava os pés no Brasil, para darmos um jeito nas minhas unhas, pelos e cabelos, todos bastante negligenciados para os padrões mineiros. Ela quase morria de vergonha quando eu reclamava do atraso das cabelereiras ou dizia sem firulas o que pensava dos tratamentos que elas me propunham, às vezes coisas esdruxulas como “alongamento de cílios”. 

Mas voltemos à “vida chata” que estou levando. Pra começar, estamos no meio do inverno e esta época do ano é sempre chata. O inverno parisiense não tem nenhum charme, o céu alterna tons de branco e cinza, garoa quase o tempo todo, não faz frio o suficiente para as casas serem bem isoladas e os franceses insistem em se vestir de maneira elegante e pouco prática. Resultado: você está sempre com frio. Percebi a diferença quando fui para Nova York num mês de fevereiro. Fazia muito mais frio do quê aqui, mas as pessoas usavam uns casacos que as deixavam parecendo o boneco da Michelin, os interiores das casas eram bem aquecidos, o sol brilhava, o céu era azul e a neve deixava tudo lindamente decorado de branco. Aqui sequer neva. Quer dizer, nevou hoje pela segunda vez este inverno. Nas duas vezes a neve caiu durante umas quatro horas, o que é sempre um deleite para o olhar, mas na sequência caiu uma chuva fina que fez com que ela se transformasse numa lama marrom e escorregadia, levando embora toda a poesia e deixando só a parte desagradável da coisa. 

Pra piorar, esta é a época do ano em que os amigos postam fotos de praias paradisíacas, todos de biquíni, bronzeados e felizes, tomando água de côco, contemplando o mar ou esticando os pés pra fora da rede. Aí a frustração de não estar no Brasil fica quase insuportável. Normalmente em dezembro começo a sonhar, literalmente, que estou na praia. Aguento firme porque sei que no mais tarde em fevereiro desembarcarei no meu país tropical. Mas este ano não sei quando conseguiremos viajar… O marido hipocondríaco declarou que só depois que estivermos vacinados. Hein? Como assim? Parece que a França é um dos países com a campanha de vacinação mais lenta da Europa e eu estou longe de ser uma pessoa prioritária. Sem falar nas variantes do Covid que já chegaram por aqui, ainda nem sabemos se a vacina será ou não eficaz para contê-las. Por hora prefiro não discutir, mas já vai fazer um ano que estive no Brasil pela última vez e não acho que dou conta de esperar muito mais do quê isso. A saudade cresce à medida que o tempo passa e agora já está ficando forte demais da conta, uai.

Voltemos à questão das variantes. Um dia anunciaram que já havia um caso da variante inglesa na França, menos de duas semanas depois 1% das contaminações por Covid em solo francês eram da tal variante inglesa. O bichinho é rápido, talvez seja mais mortal, talvez afete mais as crianças, talvez… É o retorno da incerteza que parecia nos deixar com a chegada da vacina. Incerteza que se reflete nas nossas ações, coletivas e individuais. A França continua sendo muito mais organizada do quê o Brasil na gestão da pandemia, o que não quer dizer muita coisa, mas existem várias zonas confusas. Por exemplo, as escolas estão abertas mas as atividades extraescolares fechadas. As atividades extraescolares estão fechadas mas os conservatórios estão abertos. Os conservatórios estão abertos e as aulas de teatro voltaram a ser presenciais, mas as de dança continuam acontecendo à distância. Mais exemplos: até o último ano do segundo grau a escola funciona, mas as faculdades estão fechadas. As faculdades estão fechadas mas as “classes préparatoires”, que também correspondem ao nível universitário, estão abertas. A terapeuta do marido continua recebendo, a minha declarou que as sessões serão pelo telefone durante tempo indefinido.

Fazer sessões de terapia pelo telefone, praticar yoga pelo zoom, dar aulas pelo skype, estar com as crias em casa antes do toque de recolher às 18h…  A vida está mesmo chata, não dá pra responder outra coisa sem mentir. Nem as conversinhas com os pais das crianças na porta da escola, único momento de socialização do meu dia, estão mais acontecendo. As pessoas estão com medo de conversar umas com as outras, mesmo através das máscaras e com mais de um metro de distância entre elas. Aliás, anunciaram que as máscaras caseiras de pano não protegem da variante inglesa, somos todos encorajados a usar a descartável. Ainda não me rendi, não estou com a menor vontade de compactuar com mais esta catástrofe ambiental.

Por aqui estamos à espera de um terceiro confinamento. Soube por fonte segura, mas na verdade isso não existe, que dia 8 de fevereiro haverá um novo lockdown. Enquanto ele não chega, ontem aproveitamos para almoçar com os amigos. Não fazíamos isso desde o natal, decidi que esta era a sociabilidade mínima necessária para suportar o próximo período isolados. Dois casais desistiram de participar do almoço na última hora, confesso que achei bom, já éramos seis adultos e várias crianças, estava de bom tamanho. Tomei cerveja, comi vaca atolada e até arrisquei cantar, mesmo desafinando, porque não é todo dia que tem uma roda com violão por aqui. Mas quando deu 17h o marido estava tenso, tínhamos que voltar antes do toque de recolher e três jovens chegaram na festinha. Fui embora contrariada, mas feliz por ter escapado, pelo menos durante o tempo de uma tarde, da chatice que a vida cotidiana virou. 

Confinados, desconfinados, desconfinados com toque de recolher, reconfinados, quase desconfinados, quase quase desconfinados, mais ou menos confinados com toque de recolher….

Assim está a vida na França desde que começou a pandemia. No começo eu seguia tudo direitinho. Como todos os franceses que conhecemos, eu e o marido nos assentávamos em frente à televisão no dia marcado, sempre às 20h, para escutar o Presidente falar. Na sequência ouvíamos os esclarecimentos feitos pelo Ministro da Saúde e, quando eu já tinha perdido a paciência e começado a fazer outra coisa, o marido ainda acompanhava as explicações das explicações fornecidas pelos jornalistas. Saíamos com regras precisas e outro encontro marcado, geralmente para dali a quinze dias. Assim, vivíamos de duas em duas semanas, na expectativa de saber se as regras seriam relaxadas ou, ao contrário, reforçadas, em função da evolução da doença em solo francês. Foi até bom as coisas se desenrolarem desta forma, porque se no começo de março Macron houvesse anunciado que as crianças ficariam em casa até setembro eu teria tido um troço. Aos pouquinhos, as más notícias que duram ficam mais fáceis de ser engolidas.

Progressivamente, o presidente anunciava as limitações de movimento às quais deveríamos nos sujeitar, as atestações que deveríamos preencher declarando sob compromisso de honra que tínhamos um bom motivo para colocar os pés na rua e quais motivos eram considerados legítimos para isso. As informações evoluíam à medida que o conhecimento sobre o coronavírus aumentava, ou na medida em que sua difusão convinha ao governo. No começo, por exemplo, quando ainda não havia máscaras na França, disseram-nos que elas não serviam para nada. Eram inclusive perigosas, verdadeiros ninhos de bactérias, sem falar nos riscos de contaminação ligados ao seu mau uso ou ao falso sentimento de proteção que criavam. Depois que os estoques encomendados pelo governo chegaram, as máscaras se tornaram fundamentais. Primeiro, fomos obrigados a usá-las em lugares fechados; depois, nas feiras e praças; por fim, em todos os lugares, inclusive na rua, no bosque e nas escolas para crianças acima de seis anos.

Em linhas gerais, ainda sei o que está acontecendo, ou melhor, o que estão exigindo de nós. Mas parei de acompanhar os anúncios do presidente de perto depois que li um grafite que resume tudo com bastante justeza: 

Travailler, consommer, se faire chier.

Em português: “Trabalhar, consumir, se entediar”. Como boa cidadã, todos os dias eu trabalho, consumo e me entedio. Também passo raiva com as crianças, repetindo mil vezes que é hora de escovar os dentes, tomar banho, arrumar o quarto, etc. Como disse para um amigo solteiro ao tentar explicar o clima aqui em casa, estamos parecendo uns ratos presos na gaiola. Mas quando penso que no Brasil as crianças estão sem ir à escola desde março, enquanto os comércios estão abertos e cada um faz o que lhe apetece, fico com vergonha de estar de saco cheio. Sinto que estou me transformando num desses parisienses rabugentos, que reclamam de tudo e não se dão conta dos privilégios que têm. 

Vou então focar nas coisas boas e anunciar a melhor notícia dos últimos meses: o vizinho malvado se mudou! Sim, isso mesmo, o vizinho malvado mudou de casa! Ele, o cachorrinho branco e a mulher que me disse “Estou pouco me fudendo” e “Eduque seus pirralhos” quando tentei explicar que o confinamento também era difícil para as crianças. Se escafederam, uhu!!! Saboreamos a notícia em etapas. Primeiro quando um vizinho contou para o Vincent que o malvado iria se mudar, mais de um mês atrás. Nos regozijamos timidamente, com certa reserva, não queríamos cantar vitória antes da hora, vai que era um mal-entendido. Uma ou duas semanas mais tarde Madame Khalil, a porteira redonda e sorridente do prédio, me interpelou no meio da rua e disse: “Madame Serfaty – ela me chama pelo sobrenome do Vincent, apesar de não sermos casados – o vizinho vai se mudar! Você vai respirar aliviada, Madame Serfaty!”. Madame Khalil estava radiante ao anunciar a boa nova. Tanto que fingi surpresa. Quando ela se foi, Jasmim comentou, atônita: “Mas mamãe, você já sabia!”. Pega no pulo, respondi: “Sim filhinha, eu já sabia, mas às vezes a gente dá de boba pra não estragar a alegria dos outros”. Ser mãe é errar na educação dos filhos…

No dia da mudança, a vizinha do segundo andar, a que aguentava as vassouradas inoportunas e raivosas do mal elemento, pois moramos no primeiro e ele morava no terceiro andar, me mandou uma mensagem de texto: “Você está vendo o que estou vendo?”. Sim, as crianças, o Vincent e eu passamos o dia admirando os móveis deslizarem pela estrutura metálica que ia do terceiro andar à calçada, desfilando em frente à nossa janela. Que espetáculo maravilhoso! Começara logo cedo, com o vizinho no telefone e um carro que estava estacionado em frente ao prédio sendo guinchado para não atrapalhar a mudança. Era assim que este indivíduo resolvia seus problemas, ligando para a polícia.

Dois dias mais tarde, Jasmim, Enzo e eu voltávamos do supermercado cantando a musiquinha que virou hit aqui em casa desde o dia da mudança quando cruzamos Madame Khalil na rua novamente. A musiquinha, de autoria minha e da Jasmim, diz assim: 

Ce jour béni où le voisin est parti 

On en a rêvé, ce jour est arrivé.

Em português perdemos a rima, mas os versos dizem: « O dia abençoado em que o vizinho partiu; sonhamos com este dia e ele chegou”. Madame Khalil deu risadas ao ouvir nosso canto : “Ah Madame Serfaty, agora você vai respirar. A gente ouvia vocês gritando com as crianças e pensava ‘coitadinhos, são apenas crianças’. Agora você vai respirar Madame Serfaty, agora vocês façam o que quiserem”. Madame Khalil acrescentou que quando a vizinha bateu na sua porta para anunciar que estavam se mudando para o Sul e pedir que guardasse suas encomendas, ela se negou: “Foi a primeira vez que recusei guardar os pacotes de um morador em mais de trinta anos, Madame Serfaty. Mas depois do que eles fizeram com vocês, eu não ia fazer esse favor pra eles”.

Este segundo encontro com Madame Khalil me deixou dividida. Por um lado, fiquei tocada com sua gentileza e cumplicidade. Madame Khalil é uma matriarca tunisiana cuja presença sempre me confortou. Apesar de mantermos a distância imposta pelas normas de convívio parisienses, temos estima uma pela outra. Quando, alguns anos atrás, eu estava sozinha, muito gripada e cuidando de dois bebês igualmente doentes, foi na porta dela que eu toquei e em seguida caí no choro, porque já eram duas da tarde, eu ardia em febre e em casa não havia comida nem antitérmicos para mim mesma. Por outro, fiquei incomodada ao saber que todos os moradores do prédio nos ouvem gritar. O imóvel foi construído em 1910 e é realmente mal insonorizado, pela manhã eu acordo com o alarme do telefone da vizinha de cima. Mas esta fala aumentou minha sensação de viver em um reality show. “O que os vizinhos vão pensar?”. Sempre detestei este raciocínio, que associo à um modo de vida medíocre e conivente, mas agora me pego não somente pensando assim, como também dizendo isto às crianças. Só me resta cantar Elis, de preferência bem alto para o prédio todo ouvir: “Minha dor é perceber, que apesar de termos feito tudo, tudo o que fizemos…”.