Parem este ônibus

« Parem este ônibus, meu filho está lá dentro! Parem este ônibus, meu filho está lá dentro!”. 

Eu repetia esta frase aos berros ao mesmo tempo em que corria. Estou acostumada a ser a mãe que grita no meio da rua, pois desde que Enzo sabe andar ele vai pra onde quer quando quer, me obrigando a correr atrás: “Cuidado com o carro, não atravessa, espera a mamãe!”.  Enzo nunca teve medo de se perder ou machucar, ou talvez ele sempre tenha confiado que eu estaria logo ali, dando um jeito de acompanhá-lo. Ao ver esta cena, amigos e familiares sugeriram mais de uma vez que eu o amarrasse com uma cordinha ou algo que o valha. Mas preferi manter sua liberdade, enxergando com bons olhos a autonomia e confiança em si mesmo do pequeno, apesar dos sustos – confesso que já o perdi algumas vezes. 

Mas desta vez a coisa tomou proporções inimagináveis. Se é cansativo correr atrás de uma criança, correr atrás de um ônibus é desesperador. E desta vez a culpa nem foi dele… Estávamos no ponto, ele brincando, eu selecionando fotos no telefone, quando o ônibus se aproximou. Chamei, “Enzo, vamos, o ônibus está chegando!”, e me distraí. O montinho de pessoas que estava na minha frente entrou e chegou nossa vez. Olhei para os lados para dar a mão ao Enzo, mas não o vi. “Talvez ele tenha entrado sem eu perceber”. Mal tive tempo de formular este pensamento e o motorista fechou as portas. Bati com força. O motorista olhou na minha cara e acelerou. 

Fiquei ali plantada. Acabara de inventar o segundo “dilema do ônibus”. O primeiro é aquele em que você já esperou um tempão e começa a pensar que talvez seja melhor pegar outro modo de condução. O que fazer: esperar indefinidamente por um ônibus que talvez não chegará, ou ir embora, correndo o risco de o ônibus chegar no instante seguinte, fazendo com que toda sua espera tenha sido em vão? Todo mundo que pega ônibus passou por isto um dia. O meu dilema do ônibus foi um pouco mais trágico. O que fazer: olhar atentivamente em volta e me certificar que Enzo não está brincando no ponto, perdendo assim preciosos segundos na corrida contra a máquina, ou sair correndo imediatamente, assumindo o risco de deixá-lo sozinho na calçada?

Um brevíssimo cálculo me fez escolher a segunda opção. O ônibus em questão atravessa a cidade horizontalmente, indo do bairro pacato onde moro até um dos lugares mais badalados de Paris. Prefiro perder Enzo perto de casa do quê num lugar onde ele nunca esteve. Saí correndo o mais rápido possível. Logo eu, que nunca gostei de correr; que sofri as piores humilhações da vida nas aulas de educação física, quando a gente era obrigado a correr em volta da escola; que nas pouquíssimas vezes em tentei correr para manter a forma achei que meu coração fosse parar; que sou alérgica ao meu próprio suor e fico com as bochechas queimando e o pescoço coçando ao cabo de poucos minutos de esforço. Logo eu, a anti-heroína da corrida, deveria alcançar o ônibus no próximo ponto ou perder meu filho para sempre. Como se não bastasse, estava carregando, além da bolsa, a mochila do filho, a sacola com o lanche e a cartolina com os desenhos. Ah, e é claro, estava sem sutiã. 

Pensava nestas coisas enquanto corria e observava o ônibus se distanciar exponencialmente. Também pensava que deveria ter tido filhos aos vinte anos, que loucura virar mãe depois dos trinta. Mas o pior pensamento era a lembrança de um livro que li ainda este ano, Véspera, da envolvente Carla Madeira. O livro começa com uma mãe exasperada que faz o filho descer do carro e o larga na calçada. O menino do livro tem cinco anos e meio, idade do Enzo quando o li, e um temperamento parecido com o dele. A mãe deixa o filho na calçada, entra no carro, parte sozinha e, pouco depois, se dá conta do que fizera. Alguns minutos mais tarde, quando enfim ela consegue retornar ao local onde abandonou o rebento (tratava-se uma avenida de mão única), ele não está mais lá. O livro inteiro se desenrola sem que a gente saiba se a mãe culpada e arrependida conseguirá recuperar o filho. A enorme angústia que senti durante esta leitura se multiplicou por mil enquanto eu corria atrás do ônibus. “Me distraí por alguns minutos e agora vou passar o resto da vida sem o Enzo”, pensava. 

Nestas alturas, além de correr eu também berrava, consciente de que se ninguém me socorresse a lei de Murphy agiria em meu desfavor. O ônibus estava parado no ponto seguinte, as últimas pessoas acabavam de embarcar e as malditas portas iriam se fechar novamente, me deixando comer poeira por uma questão de segundos. Logo antes do ponto, grupinhos de adolescentes fumavam na saída da escola e me olhavam estarrecidos, mas não se mexiam. Minha vontade era de gritar: “Façam alguma coisa, bando de imbecis blasés”, mas me ative às mesmas informações essenciais: “Parem este ônibus, meu filho está lá dentro!”. Foi quando um adolescente surgiu do outro da calçada, me olhou nos olhos e, numa fração de segundos, correu bem mais rápido do que eu. Devo dizer que era uma subida e eu, que vinha correndo desde o ponto anterior, estava começando a perder o fôlego.

Não tive tempo de trocar nenhuma informação com o rapaz, mas confiei que ele estava correndo pra mim e continuei correndo. Graças a Deus não me enganei. Quando cheguei meu anjo salvador estava em pé segurando a porta do ônibus. Ele me deu um sorrisão e disse: “Tudo bem madame, ele está lá dentro”. Agradeci rapidamente, decerto não da forma que ele merecia, eu estava por demais estabanada e emocionada para agir corretamente. Fui logo dando esporro no motorista : “Você não abriu a porta quando eu bati, sendo que meu filho de seis anos está sozinho aí dentro! Putain!”. Estarrecida, notei que ele me respondia à altura e não tinha a menor intenção de se desculpar, pelo contrário. Suas palavras chegaram a mim como um conjunto ruidoso desrespeitoso e desagradável, do qual não discerni nenhuma palavra. De toda forma eu não estava em condições de bater boca com o motorista. Desviei a atenção e me concentrei nas pessoas que gritavam, do fundo do ônibus: “Ele está com a gente madame!”.

Vi o Enzo sentado nas últimas cadeiras do ônibus. Corri até ele, me assentei ao seu lado e desmoronei. Para minha surpresa, comecei a chorar e soluçar, incapaz de pronunciar qualquer palavra. À minha frente uma mãe com seu filho, que devia ter a idade do Enzo, me encarava atônita. Era uma dessas mães francesas cujas proles estão sempre silenciosas, assentadas direito e com as roupas limpas. Ela parecia meu reflexo invertido no espelho, a mãe competente que criou uma criança obediente e jamais passará a vergonha de chorar aos prantos depois de correr e gritar bairro afora atrás de um ônibus. Felizmente a senhorinha sentada ao lado me ofereceu uma bala. Aceitei por educação e cética quanto à eficácia do gesto, mas percebi que chupar a bala me ajudava a manter uma calma relativa.

Chegamos em casa e continuei chorando e soluçando, sentada no chão com a cabeça entre os joelhos, depois de ter trancado a porta à chave para ter certeza de que Enzo não iria a lugar nenhum. Ele buscou a caixinha de música no seu quarto, deu corda e me encheu de beijinhos. Não sei dizer quanto tempo se passou assim… Quando recuperei o controle das minhas emoções, perguntei ao Enzo se ele percebeu que eu não estava no ônibus, ele respondeu que não. Com um sorriso maroto, ele acrescentou : “Mamãe, você falou aquela palavra que começa com ‘pu’”. Putain é o palavrão francês por excelência. Derreti. Se esta foi a única coisa que o marcou, então está tudo certo. 

No fim de semana seguinte, numa festa de família, minha sogra me surpreendeu! Eu estava contando esta história para as irmãs do Vincent quando ela se aproximou. Eu ia me interromper quando decidi que “foda-se, ela que pense o que quiser”. Foi-se o tempo em que eu buscava corresponder ao seu ideal materno. Quando terminei de contar, ela simplesmente comentou, com um sorrisinho: “toda mãe parisiense já passou por isso”. 

Ps: a foto que ilustra o texto é de um imenso cano que desemboca no mar e cujo acesso é  proibido ao público. Dois anos atrás o Enzo pulou a correntinha e correu até o final, e lá fui eu correndo atrás…

5 x 1

Já faz algum tempo que não escrevo sobre a sogra francesa, por dois motivos: primeiro, pensava haver resolvido, ao menos na minha cabeça, nossa relação; segundo, porque o coronavírus nos forneceu uma razão legítima para não nos encontrarmos. A distância e o tempo quase me fizeram esquecer as maldades de Chantal. Nas vésperas do aniversário da minha filha, o Facebook propôs a lembrança de um lindo moisés de vime branco, enfeitado com uma renda alvíssima e laços de cetim. A sogra preparou este bercinho para Jasmim, assim como havia feito para seus filhos e netos que chegaram antes dela. Enternecida com a memória, postei a foto, dando-lhe os devidos créditos. Vários amigos comentaram, admirados com a beleza do moisés e o capricho da sogra. Até pensei mudar o nome do blog. Comentei com o marido, acrescentando que no final das contas escrevo mais sobre maternidade e vida na pandemia do quê sobre a mãe dele, mas Vincent protestou: “Não, você não pode mudar o nome, é isso que é legal no seu blog”. Para vocês verem… Acho que pro Vincent é catártico eu colocar em palavras um pouco da raiva que passamos por conta dessa dama.

Mas estou passando os carros na frente dos bois. Vou começar voltando às férias escolares de fevereiro quando, pela primeira vez, os sogros levaram Jasmim, que está com oito anos, para a casa de campo com eles. Jasmim foi toda feliz, qualquer ocasião de ficar longe dos pais é boa para essa menininha atrevida e aventureira.  Eu fiquei ao mesmo tempo satisfeita por ela desfrutar desse tempo junto aos avós franceses, ressabiada, achando que eles a levaram só para ela fazer companhia aos dois priminhos que passam todas as férias com os avós, e um pouco chateada por eles não cogitarem levar o Enzo. 

O marido, que é professor, estava de férias e poderia ter ido para o campo junto com Jasmim, mas ele também receia passar mais do quê algumas horas na companhia da mãe. Ao mesmo tempo, era muita sacanagem o coitadinho do Enzo ficar duas semanas no apartamento com os pais enquanto a irmã brincava com os primos numa casa imensa com um jardim ainda maior. Eu já havia decidido que não me faço mais violência indo para a casa da sogra. Posso até ter ficado comovida com a lembrança do bercinho, mas não fiquei burra. Ao cabo de três dias, Vincent resolveu pegar um trem com o filho rumo à casa de campo. Partiu contrariado, avisando que ficaria duas noites, no máximo três. Concordei, tentando disfarçar a alegria de ficar sozinha em casa. No fundo tinha esperanças de que Vincent mudasse de ideia quando chegasse. Afinal, é a casa de campo da família dele, ele poderia ficar à vontade e ler seus livros enquanto as crianças brincavam no jardim. 

Na mesma noite Vincent ligou: “Já quero ir embora!”, disse, em meio a risadas nervosas. Não contou detalhes, mas não precisava. Conheço a sogra, não tive a menor dificuldade em imaginá-la ranheta, fazendo insinuações venenosas e favorecendo de maneira ostensiva os filhos da filha. Respondi, de forma abstrata para um observador exterior, mas que fazia total sentido para nós: “Você não é culpado de nada”. Porque esse é o poder dela, te oprimir ao ponto de você ficar triste e sem lugar, sentindo-se culpado sem saber o porquê. É como se um gás tóxico emanasse de Chantal e, de forma silenciosa e sorrateira, comprimisse seu peito ao ponto de você ficar quase sem ar. Um horror.

Nos próximos dois dias Vincent continuou telefonando, sem dizer ao certo o que estava acontecendo mas contando que estava com placas vermelhas no rosto e agora fazia como eu: refugiava-se no quarto para evitar a presença da mãe. Verdade que ao longo dos anos desenvolvi essa estratégia. Resultado: cada vez que alguém visitava a sogra encontrava uma brecha para dizer que faço longas sestas todos os dias, dando a entender que sou uma preguiçosa. Voltando ao marido, insisti para ele ficar ao menos mais um dia, pelo filho. Vincent disse que já havia comprado as passagens de volta, que o próprio Enzo já queria voltar. “A coisa deve estar feia”, pensei.

Ao voltar, Vincent contou, rindo da própria desgraça, que estava enlouquecendo: sequer conseguira ler, passara a maior parte do tempo jogando xadrez no telefone, coisa que não fazia há anos, numa tentativa patética de abstração da realidade. Não mencionou nenhum acontecimento preciso, decerto para não me deixar ainda mais indisposta com a sogra. Mas de noite, depois que Enzo adormeceu, não se aguentou e relatou a última refeição na casa dos pais:

Estavam todos na mesa comendo crepes, a sogra se encantava diante do apetite do neto preferido, que tem um ano a mais que Enzo, exclamando com orgulho que ele estava devorando sua quarta crepe. Após haver comido apenas uma crepe, Enzo declarou que não estava mais com fome, levantou-se e foi brincar. Sacrilégio! Os sogros resmungaram, comentando que o menino não sabe se comportar na mesa – Vincent me disse, chateado, pois segundo ele até este episódio nosso caçula estava se comportando muito bem. Poucos minutos depois, Enzo voltou e pediu mais uma crepe. A sogra respondeu: “Você devia ter acordado mais cedo, agora é tarde!”. Unindo o gesto às palavras, colocou a última crepe no prato do neto favorito. Quer dizer, Chantal deu cinco crepes para um neto e uma para o outro, sob pretexto de que o Enzo, que estava com quatro anos, tinha saído da mesa.

Preciso dizer que fiquei puta da vida quando ouvi essa história? Vincent até tentou defender a mãe: “Ele tinha se levantado…”. Tal é o poder desta mulher: cometer malvadezas com tanta naturalidade que ninguém ousa se opor. Porque ninguém vai me convencer de que não é perverso e até doentio dar cinco crepes a um neto e uma ao outro, de maneira ostensiva, transformando isto na ocasião de dar uma lição, perante todos, à criança desfavorecida. Aos olhos da bruxa meu filho está sempre errado. Já testemunhei várias cenas em que ela elogiou o neto preferido e xingou o Enzo exatamente pelo mesmo motivo. Tudo o que o neto preferido e seu irmão fazem é maravilhoso. Cada vez que nos vemos ela me conta, extasiada, as proezas dos dois, sem jamais perguntar nada sobre a vida da Jasmim e do Enzo.

Foi para evitar esse tipo de coisa que não fui ao campo. Não sou mais capaz de observar este tipo de comportamento calada. Como comentou uma conhecida quando briguei com a sogra alguns anos atrás – um dia ainda escrevo sobre isso – o que meus filhos pensariam de uma mãe que abaixa a cabeça e engole todo tipo de sapo?

Passei semanas discutindo com Chantal na minha cabeça, contando a história das crepes para todo mundo que cruzava meu caminho. Quis escrever aqui, mas precisei de quase três meses para digerir, algumas emoções requerem tempo para serem traduzidas em palavras. Com o passar das semanas esse episódio foi se apagando, eu já estava voltando a pensar que a sogra é quase normal. Até recentemente. Cenas para o próximo capítulo. Pensando bem, ainda vou precisar escrever muito antes de mudar o nome do blog…

Adeus Ano Velho

1° de janeiro de 2021. Mais um ano começa. Lembro quando eu era criança e o ano 2000 estava longe. A virada do milênio. Eu seria uma adulta, teria vinte anos! Me via linda e independente, morando sozinha num apartamento moderno e minimalista, ganhando dinheiro, dona do meu nariz, provavelmente jornalista. A humanidade faria coisas incríveis, talvez até haveriam carros voadores, como nos Jetsons. Que sorte eu tinha, completar 20 anos no ano 2000, pensava, maravilhada, enxergando na coincidência dos números um sinal de bom agouro.

Nem preciso dizer que aos vinte anos eu estava mais próxima da adolescência do quê da maturidade, certo aproveitando cada instante dos anos de faculdade, mas à anos luz da jovem adulta responsável e independente que eu imaginava criança. Minhas fabulações nunca chegaram ao ano 2020. Uma criança dificilmente pensa em si mesma aos quarenta anos. Ainda bem que não fiz projeções para esta idade, senão acho que teria me visualizado numa cadeira de balanço, lendo para os netinhos. Agora que cheguei aos quarenta, ainda me sinto menina, até hoje não entendi direito como as coisas funcionam. Os números são realmente muito enganadores.

Voltemos ao presente. 2020. Há um ano atrás achei esse número lindo. Dois patinhos seguidos por dois ovais, tão harmônico. Só poderia prenunciar coisas fluidas, agradáveis. O ano começou bem, comigo experimentando pela primeira vez o carnaval de Belo Horizonte. Porque quando o carnaval de BH começou a ficar bom eu já morava fora. Durante anos vi as fotos dos amigos nas redes sociais, ao mesmo tempo incrédula e louca de vontade de participar das celebrações pessoalmente. Eis que em 2020 as férias se alinharam com a data do carnaval. O marido e nossa filha mais velha voltaram para a França uma semana mais cedo, porque ele tinha que trabalhar e ela não queria perder sua primeira viagem com a escola. Eu fiquei pra trás com o pequeno, que estava com quase quatro anos. Pela primeira vez confiei o filhote ao meu pai sem culpa e fui pular carnaval, curtir os corpos suados, espremidos e eufóricos, tomar melzinho com cachaça oferecido por desconhecidos logo pela manhã, me deliciar com as fantasias, cada uma mais divertida e criativa do quê a outra. O Enzo teve direito a participar de um bloquinho comigo, até hoje ele fala disso. Sempre que falo do Brasil, ele fala do carnaval. Outro dia passamos na frente de umas mulheres de véu e um homem de turbante na rua e ele disse: “Mamãe, olha, o carnaval, igual no Brasil!”.

Mal sabia eu que aquele exagero de afeto, alegria e proximidade física estava com os dias contados. No voo de retorno algumas pessoas usavam máscara, o que me pareceu um exagero. Chegamos em Paris no mesmo dia que minha filha voltou da excursão. Uma ou duas semanas mais tarde, as escolas fecharam. O carnaval ficou parecendo um parêntese encantado, sonho de uma noite de verão. Um delírio cuja lembrança me nutriu em alguns momentos de tédio e quase desespero durante os meses que passei confinada num apartamento mal insonorizado de 70 metros quadrados com um marido de longa data e duas crianças pequenas.

Mas houve uma coisa bonita, quase emocionante, em 2020: sua capacidade de produzir consenso. O mundo inteiro, talvez pela primeira vez, concordou: foi um ano de merda! Bolsominions e esquerdopatas, empresários e artistas, brancos e pretos, crianças e idosos, primeiro e terceiro mundo, todos apressados em virar a folhinha do calendário, felizes por começar um ano novinho em folha, ainda que para alguns a esperança permaneça discreta, quase clandestina. Acho que esta coesão de ideias foi o verdadeiro milagre de 2020. 

Para mim, na verdade, o ano não foi tão ruim assim. No final do ano perdi uma tia, foi a parte mais triste de 2020, a maneira mais direta com que o Covid me tocou. Também fui enfurnada dentro de casa logo quando começava a botar as asinhas de fora, depois de sete longos anos me dedicando, senão exclusivamente, intensamente aos filhos. Mas fora isso tudo certo. Não perdi o emprego, pelo contrário, arrumei um trabalho. Instável, precário, mal pago… Mas pra quem está acostumada a trabalhar de graça, ou a pagar para trabalhar, tudo é lucro. Pesquisadores me entenderão. Para os outros, que não imaginam a pendenga que é a vida acadêmica, a dedicação imensa e a falta de reconhecimento quase tão importante, escreverei um post em outra ocasião. Também comecei a escrever este blog, espaço de respiração, entre outros pequenos projetos que tenho na manga. Não aproveitei do confinamento para me aproximar dos meus filhos – como duas francesas me confiaram, maravilhadas, explicando que até então trabalhavam tanto que mal conheciam os próprios rebentos – porque já cuidava bastante deles. Mas cheguei até aqui sem me tornar adepta da violência, o que em si já é uma façanha, como outra amiga me lembrou num dia em que lhe confessei estar me sentindo um fracasso como mãe. Brincadeiras à parte, li por aí as informações tristíssimas de que o maltrato infantil aumentou e o suicídio de menores de quinze anos dobrou na França este ano. 

2021 amanheceu gelado. Desde o começo da semana, estamos na casa de campo dos sogros, situada no norte da França. Ah sim, já ia me esquecendo: 2020 me permitiu desfrutar de alguns dias nesta casa sem os sogros! Foi o pequeno presente que o Corona me deu, já que como eles são idosos não podemos nos encontrar. Os sogros vieram pra cá durante a primeira semana de férias com minha cunhada e seus dois filhos, o marido negociou a segunda semana pra gente. Os filhos da cunhada também vão para a escola e ela trabalha fora, mas por algum motivo obscuro somos considerados mais contagiosos do quê eles. Não questionei, apenas abracei a oportunidade de esquivar um dia de natal inteiro na casa da sogra. Este ano, pela primeira vez desde que estou na França, fui dispensada das horas intermináveis sentada no lugar que me é atribuído na mesa natalina, onde entrada, prato principal, salada, queijos, bolos, frutas, café e chocolates se seguem uns aos outros, sem pausa para esticarmos as pernas. A comida é deliciosa, cozinhada pela sogra e acompanhada pelos vinhos do sogro, mas ao longo dos anos estes encontros se tornaram penosos para mim. Em algum momento cheguei a dizer à psicanalista que não queria mais participar dos eventos familiares; ela respondeu, como se fosse simples: “Você não é obrigada”. Acontece que detesto conflitos, jamais teria coragem de me ausentar do natal na casa dos sogros. Então agradeço à pandemia por ter me oferecido uma desculpa válida para passar o natal com os amigos. Estes sim, são minha família aqui.

Desconfinamento em família

Dia 19 de maio foi a data anunciada pelo meu sogro para que deixássemos a casa de campo familiar. Eles chegariam no dia seguinte. Estávamos felizes com a possibilidade de passar quase dez dias no campo e até surpresos que meus sogros não houvessem exigido que partíssemos dois ou três dias antes deles chegarem, para dar tempo aos eventuais vírus de morrerem. Eles estão em pânico com a epidemia, morrem de medo de morrer. O que pode se justificar pela idade, pois estão na casa dos setenta, e pelo fato do meu sogro ter diabetes e problemas cardíacos. Ele é médico e está muito consciente da própria vulnerabilidade.

Numa linha imaginária da apreensão em relação ao coronavírus, meus sogros e meu pai estão em extremos opostos. Quando ligo para meu pai no Brasil e peço que se cuide, ele me responde coisas como: “Se eu tiver que partir vou partir. Vou encontrar sua mãe, quem mandou ela me largar sozinho?”, ou ainda, “Minha filha, você já perguntou pro Google quantas pessoas nascem por dia? Eu perguntei e fiquei assustado. De vez em quando uma epidemia tem que vir e matar os velhos pra equilibrar”. Sei que em parte ele está me provocando, mas não de todo. Cresci ouvindo meus pais dizerem que a única coisa da qual temos certeza na vida é a morte, afirmando com naturalidade que não estariam sempre aqui para mim. O que não me preparou para a morte da minha mãe…

Voltando à família francesa, meu marido recebeu uma criação inversa da minha. Filho de médico, estava sempre a par dos casos esdrúxulos que só quem trabalha em hospital fica sabendo, como o menino de três anos que morreu engasgado com uma folha de alface, ou a criança que engoliu um amendoim errado e ele foi parar nos seus pulmões, dividido em ínfimos pedacinhos que precisaram ser arrancados um a um numa delicada cirurgia durante horas a fio. Resultado: até pouquíssimo tempo atrás meus filhos não tinham o direito de comer nenhum tipo de noz ou salada. Nem conto como foram minha gravidezes, durante as quais fui submetida à todas as proibições alimentares existentes e mais algumas. “Aplicamos o princípio de precaução máxima”, explicou o sogro, no tom solene que ele emprega quando está no personagem do médico. Não era apenas queijos não pasteurizados, como o camembert, ou carne e peixe cru que eu não o tinha direito de comer; queijos de massa dura mas não cozidos, como o comté que adoro, e o restaurante japonês inteiro me foram interditados. Certa vez, cansada das proibições do marido, entrei num japonês e encomendei um salmão cozido. Ele ficou histérico, prestes a chorar, porque o cozinheiro poderia ter cortado o salmão com a mesma faca usada para cortar os peixes crus.

Todo casal sabe como essas diferenças de criação podem ser conflituosas quando educamos nossos próprios filhos. Quando se é casado com um estrangeiro, as divergências são ainda maiores. Eu vivo me equilibrando entre a extrema prudência do marido e sua família e a descontração à beira da irresponsabilidade da minha. Quando os dois campos se encontram, nem traduzo certas coisas, eles não entenderiam mesmo. Nessas ocasiões é sempre minha opinião que sufoco, para agradar ou ao menos acalmar os ânimos.

Acho que agora dá pra entender melhor porque minha família e eu não podíamos coabitar na casa de campo com os sogros, a cunhada e seus dois meninos. Antes de viajarem juntos, eles fizeram um exame de sangue para terem certeza que não tiveram o coronavírus e não se contaminariam entre si. Como após essa longa semana no campo o marido e eu estávamos muito pesarosos de voltar para o apartamento com as crianças, decidimos usar o dinheiro economizado durante dois meses de confinamento para alugar uma casa nas proximidades. Se o dinheiro não serve para nos dar um pouco de conforto numa situação de crise sanitária, pra quê servirá, afinal? “Mas não devíamos guardá-lo para as férias de verão?”, ponderou o marido. Que férias de verão? Estou achando complicado me projetar nos próximos meses. Acho que o melhor nesse momento continua ser viver um dia após o outro, como os alcoólicos anônimos. “Mais um dia em que só vou conversar com o marido e os filhos” é menos enlouquecedor do quê “mais três meses…”.

Visitamos duas casas de campo na região e encontramos uma pequena mas bem organizada, aconchegante, mobiliada com objetos achados nas brocantes locais (nunca sei como traduzir “brocante”, são feirinhas muito comuns na França, onde particulares e profissionais vendem objetos usados e às vezes antigos). A casa tem um imenso jardim onde as crianças podem correr o dia todo e do outro lado da cerca pastam umas vacas que minha filha adora acarinhar. Mais bucólico impossível. Fica à um quilômetro da casa dos sogros. O marido estava com medo do seu pai levar essa iniciativa à mal. Mas ele contornou a situação um dia antes de nos mudarmos, se oferecendo para pagar nossa estadia na “casa nova”, como dizem meus filhos. O marido quis protestar, mas o sogro respondeu: “é normal, já que estamos com sua irmã e os filhos dela”. É verdade que eles vão ocupar a casa de campo da família até setembro.

Ontem passei de carro em frente à casa dos sogros e meus filhos começaram a gritar “papi, papi” quando viram o avô no jardim. Parei o carro e ele nos convidou pra descer. Pela primeira vez o fato do meu filho mais novo não querer dar beijinho para cumprimentar os avós franceses não foi um problema. O distanciamento social não é de todo ruim. Foi uma situação estranha, a principio fiquei em pé, depois a sogra me disse para assentar numa cadeira do jardim. A cunhada ficou investigando, queria saber exatamente onde fomos desde que chegamos no campo – em lugar nenhum, fora o supermercado, onde fui duas vezes sozinha. Os sogros pareciam até felizes em nos ver. A avó fez um comentário gentil sobre meu filho pela primeira vez, disse que ele havia crescido. Os pequenos respeitaram a distância a princípio, mas estavam eufóricas por encontrar outras crianças e rapidamente brincavam a menos de um metro umas das outras. Houve um desconforto. Por um lado, estamos confinados na região há duas semanas e podemos considerar que não representamos um risco para a família do marido. Por outro, se esse é o caso, por que não estamos na casa de campo com eles?

No dia seguinte, minha filha insistiu em voltar à casa dos avós, queria muito brincar com os priminhos. Como havíamos sido bem recebidos, atendi ao seu pedido. Dessa vez foi diferente, o ambiente era hostil. Meu filho mais novo levou uma pesada do primo na balança e a avó e a tia correram para acuar a criança chorando. Quando viram que era ele quem tinha se machucado, respiraram aliviadas e viraram as costas. Eles pareciam incomodados com nossa presença, ao ponto de eu me justificar por ter passado ali no fim da tarde. “Fomos nós quem dissemos pra vocês voltarem”, disfarçou a cunhada. Se eles não tivessem falado nada no dia anterior, eu não teria me aventurado a voltar…

Fiquei decepcionada, achei que em doses homeopáticas uma relação saudável com a família francesa seria possível. Comentei o acontecido com o marido, que ainda não foi ver os pais – nas duas vezes, ele aproveitou do raro momento sozinho pra estudar para um concurso. Ele respondeu: “Eles devem ter se sentido como depois que você transa sem camisinha”.

Deve ser. A França inteira está desconfinando, menos nós. E a família do marido é ainda mais louca do quê ele. Parece que já existe um nome para essa condição, uma síndrome parecida com a de Estocolmo, em que as pessoas não conseguem sair da quarentena e retomar relações sociais, ainda que respeitando todas as regras. Pouco importa. Bom mesmo é que pela primeira vez tenho a ocasião de estar no campo numa casinha que podemos chamar de nossa, onde não me sinto oprimida, culpada e sem lugar o dia todo. Como disse, o distanciamento social não é de todo mau.

No campo com a sogra, parte 2

Na manhã seguinte, acordo doente. Chantal e Albert estão alvoroçados, vão receber um casal de amigos de Jeanne. Quando desço as escadas, às quase dez da manhã, a sogra, que normalmente dorme até mais tarde sob o efeito de soníferos, já está de pé e passa a ferro a proteção de algodão branco das cadeiras da sala de jantar. Ela me lança um olhar de pura reprovação. Cogito explicar que acordei pela primeira vez às seis da manhã, com o bebê, mas por volta das oito e meia supliquei ao marido que saísse da cama e me deixasse dormir um pouco, pois havia passado uma noite horrível, assoando o nariz, delirando com a febre, procurando em vão uma postura confortável. Deixo pra lá, de nada adiantaria. Digo apenas, em um sussurro, que perdi a voz. Ao que ela responde: “ – Melhor assim”.

Dou bom dia à Jeanne, que está sentada na mesa tomando café da manhã. Digo-lhe que estou doente como não me ocorria há anos. Ostentando um semblante quase tão impassível quanto o da mãe, ela não se dá ao trabalho de responder. A expressão emburrada salienta a magreza e as olheiras escuras que vieram habitar seu rosto desde a morte do marido. Seus cabelos, negros pontuados por fios brancos que antes não estavam ali, estão desordenados, presos num rabo baixo desleixado. As costas arqueadas parecem penar para sustentar o peso das roupas largas. Sinto-me sem jeito por ter evocado meu próprio mal-estar.

As crianças correm no jardim. Indisposta, deixo-me cair no banco de madeira e observo. O céu está azul, sem sinal de nuvens. Nessas ocasiões, os europeus correm para fora das casas para não perder nem um instante dos raios de sol. Enfastiada dos meses cinzentos, eu também cobiço, há muito, dias como esse. Hoje, porém, daria tudo para ficar na cama, recuperando do vírus que sobrepujou meu organismo durante a noite.

Jasmim, minha filha mais velha, pede que eu a empurre na balança. Exausta, proponho fazer uma coroa com as margaridinhas que pontuam o gramado de branco. A menina joga as flores no chão e corre atrás de Jeanne, que se posiciona em frente à balança, prestes a empurrar seus filhos, David e Anton. Tomo ímpeto para me levantar, mas parece que meu corpo foi atropelado por um dos imensos tratores verdes que transitam regularmente na estrada em frente à casa. Forço a garganta e, com a voz fraca, esboço desculpas. Jeanne continua carrancuda. Ouço a voz do meu marido na cozinha perguntando onde estou, e a resposta desdenhosa de Chantal: “- Sua mulher está muito doente pra cuidar da própria filha!”. Minhas bochechas febris ficam ainda mais quentes. Repito mentalmente um mantra, num esforço de alto controle. A raiva passa, mas em meu peito cresce a opressão silenciosa que torna difícil respirar, a culpa muda e indefinível que, aos poucos, toma conta de mim cada vez em que estou na casa de campo dos sogros.

Os convidados de Jeanne chegam e o almoço se revela um verdadeiro suplício. Aperitivo, entrada, prato principal, queijos, sobremesa, café… As horas que passo sentada naquela mesa, lutando em silêncio para não esvanecer, retirando e tornando a colocar o casaco, parecem intermináveis. Como gostaria de pedir licença e subir para o quarto, proeza impossível na casa de Chantal. Lembrei-me de certa vez em que estávamos ali, Jasmim acabara de completar um mês e acordava a noite toda para mamar. Cada hora de sono contava, mas eu devia esperar o fim dos longos jantares para poder me deitar, como se não estivesse em pleno puerpério. Chantal, que nunca amamentou, me fazia pagar minha escolha. Até mesmo meu sogro, que é médico, se incomoda com o fato de eu amamentar. Ao longo desse almoço interminável, a única vez em que ele me dirigiu a palavra foi para dizer, provocativo : “Tenho pena de você, que amamenta e não pode provar esse vinho maravilhoso”. Ao que respondi, com uma ousadia ainda inédita: “Não é porque estou amamentando que não estou bebendo, mas porque estou realmente doente!”. Nesse ambiente repressivo, saboreio essas pequenas repartidas como conquistas. Outro momento vitorioso foi quando Jasmim exclamou, tão logo Chantal colocou as batatas sauté no seu prato: “Não quero, é batata podre!”. A sogra, claro, nada disse na frente dos convidados. Mas lançou um olhar furioso da minha filha ao meu sogro, em busca de cumplicidade. Como se a exclamação típica de uma criança de quatro anos fosse mais uma prova da selvageria da minha prole. Ela também me fuzilou com o olhar, esperando que eu repreendesse Jasmim. Foi minha vez de fingir que nada acontecera. Como poderia sabotar o único momento delicioso do almoço?

A tarde passa arrastada. Conto as horas para o jantar, o banho das crianças, a história de boa noite de Jasmim, a mamada final de Enzo, até que finalmente me desfaleço na cama. Imagens começam a se formar em minha mente, estou quase sonhando quando sou acordada pela tosse, ou pelo ronco de Vincent, ou o choramingar de Enzo, ou ainda Jasmim, que quer fazer xixi… Tudo se mistura em uma bruma confusa. Alterno ondas de frio e calor, troco duas vezes o pijama encharcado de suor. Em meus delírios, vejo Chantal debruçada na janela e caindo no jardim. Não conto para ninguém, mas o sonho me trás uma satisfação alegre. Acordo da noite tumultuada com um sorriso nos lábios. Nada como uma compensação imaginária para suportar o campo com a sogra.

 

No campo com a sogra

Atendendo a pedidos, aí vai uma história com a sogra. Aconteceu três anos atrás. É tudo verdade, mas os nomes são fictícios.

 

Seis horas da tarde. Meu rosto se ilumina quando abro a porta do carro. O sol, ainda alto, realça o verde da grama recém cortada. Seus raios formam pequenas estrelas que pendulam junto com as barras de ferro da balança, de onde ecoam sonoras risadas e despontam bracinhos e perninhas. Há meses anseio por esse frescor. “A gente revive”, disse uma amiga quando almoçávamos em uma mesa ao sol, uma semana atrás. Meu coração reconheceu a exatidão dessas palavras simples. É primavera e eu renasço em cada brotinho que surge na ponta de cada ramo de cada árvore. Nessa época do ano, os ninhos são facilmente visíveis através dos galho seminus. Uma felicidade boba me invade quando percebo um pássaro voar com gravetos no bico. Fecho os olhos, sinto o calorzinho se difundir na pele enfim livre dos casacos de inverno.

Mas tal leveza não pode durar. Ao fundo do jardim, sentada numa espreguiçadeira, contrastando com a imponente casa de pedras e revestimento amarelo típico dessa parte da Normandia, está ela, Chantal, minha sogra. Uma respiração pesada marca a volta à realidade. Enzo começa a se impacientar na cadeirinha de bebê. Pego-o no colo e desço o morrinho que leva até a casa. Me pergunto como agir, afinal, na última vez em que estive ali me rebelei pela primeira vez, após mais de dez anos engolindo as malícias dessa senhora. Atravessei o portão furiosa, o tapete de yoga num braço e o recém-nascido no outro, os pés descalços desafiando as pedrinhas da estrada, berrando que jamais entraria naquela casa novamente. Desde então, muita água rolou. Uma semana após ter me insurgido, engoli meu orgulho e enviei um cartão de paz para Chantal, que por sua vez fingiu que nada acontecera, empurrando a poeira para debaixo do tapete com polidez francesa.

Sobretudo, alguns meses após esse episódio, o esposo da filha caçula de Chantal, Jeanne, faleceu abruptamente, deixando-a viúva com dois filhos pequenos. Além de Jeanne e do meu marido, Chantal tem outra filha, a mais velha dos três. Jeanne sempre fora sua preferida e, desde antes de perderem o pai, seus filhos, que têm praticamente a mesma idade dos meus, são seus netos favoritos. Na verdade, é como se Chantal tivesse uma filha e dois netos, quando na verdade ela tem três filhos e sete netos. A morte do marido de Jeanne não melhorou essa situação, pelo contrário. Ela, que já era uma santa aos olhos da mãe, se tornou uma mártir. Mas, como é próprio da morte, esse acontecimento trouxe uma urgência de união para a família, suspendendo momentaneamente as antigas querelas.

“Talvez a satisfação de ver meu filho, seu neto mais novo, alivie a situação”, espero. Não há quem não derreta com o olhar esperto e o sorriso maroto de Enzo : na creche, as moças brigam para cuidar dele; na rua, as velhinhas param para conversar, subjugadas pelo seu charme. Esse pensamento me dá coragem. Prossigo, quase sorridente. Mas Chantal não se levanta da espreguiçadeira, sequer descola os olhos do livro. Me aproximo e deposito Enzo na grama, próximo aos seus pés. Anton, filho de Jeanne, um ano mais velho que Enzo, corre até o primo e lhe faz um carinho na cabeça. A sogra declara, então, encantada: “- Que gracinha, ele o acaricia como se fosse um cachorro”.

 

Continua…

Minha sogra francesa

Poucos dias após ter começado esse blog mandei o link para uma grande amiga, que respondeu: “Muito bom!!! Só não está fazendo sentido, ao menos até agora, o nome do blog…”. Ignorei o comentário. Passei os últimos meses pensando na sogra praticamente todos os dias e apenas recentemente consegui me liberar dessa carga emocional; estava relutante em voltar a ocupar minha mente com um assunto que me chateia. Ao mesmo tempo, gosto do nome “Minha sogra francesa” e não tenho vontade de mudá-lo.

Chegou a hora de explicar as razões do título. Comecei esse blog há exatamente dois anos, numa época em que precisava escrever sobre a sogra para suportar sua existência. Criei a conta no wordpress, o título, o e-mail, o pseudônimo, mas não tive coragem de publicar nada. Acho que, em parte, eu tinha medo que ela descobrisse minha atividade secreta. No fundo, ainda acreditava que um dia pudéssemos ser próximas. Eu era mesmo muito iludida.

Agora liguei completamente o foda-se. Quem está sofrendo é o marido, que começa a enxergar uma faceta da mãe que não é de todo apreciável. Aliás, foi um comentário dele hoje mais cedo que me motivou a escrever essas linhas. Eu estava ajoelhada no chão, lavando os cabelos da nossa filha, quando ele disse, com um sorriso : “Minha imagem da maternidade é ganância e ódio”. Na hora não entendi se ele estava brincando ou me atacando, nem por quê. Depois caiu a ficha, não era de mim que ele estava falando, mas da própria mãe.

Pra vocês começarem a entender essa figura difícil sem sair do tema do confinamento, conto aqui o motivo do meu marido estar chocado com a atitude dela, a ponto de ruminar pela casa dizendo bizarrices sobre a maternidade : nesse exato momento existe uma maravilhosa casa de campo na Normandie, com um imenso jardim e um carro na garagem, inutilizados. Os sogros preferiram ficar confinados no seu apartamento parisiense, pois se sentem mais seguros estando próximos aos hospitais, e optaram por manter a casa de campo vazia com o carro lá dentro. Pouco importa que o filho e os netos estejam confinados num apartamento de dois quartos sem quintal e com vizinhos intolerantes.

Eu nem penso nisso, já fiz o luto da casa de campo há tempos, só me aborreci quando interditaram o bosque ao lado da nossa casa. Lá sim, é meu oásis. Mas o marido, apesar de saber a mãe que tem, ainda pensava na casa da Normandie como sendo um pouco sua também. Afinal, adolescente, ele passou diversas férias de verão esfregando o musgo de azulejos de demolição para a renovação da casa, enquanto seus amigos “iam para colônias de férias e passavam a mão nos peitos das meninas”.

Histórias com a sogra virão, vocês vão ver, ela é um personagem complexo, uma perfeita vilã de novela, gentil e educada à primeira vista, perfídia e venenosa quando chegamos perto. Mas por enquanto prefiro refletir sobre o dia-a-dia do confinamento e oferecer textos que, espero, nos ajudem a atravessar esse momento delicado.