Férias bizarras

“Não é verdade que somos uma família bizarra, Jasmim?”. Estávamos na estrada quando, do nada, meu filho de quatro fez essa pergunta para a irmã, três anos mais velha. Dias depois a voz infantil ainda ressoava na minha mente. O que terá feito a indagação surgir na sua cabecinha? Será que somos gente bizarra?

Até hoje não tive coragem de gastar dinheiro comprando móveis e moro numa casa onde caixas de plástico fazem as vezes de gavetas. Quando vou ao Brasil, fico encabulada ao entrar nos apartamentos das amigas da mesma idade. Elas me parecem tão mais adultas do que eu, com suas casas decoradas, empregadas e babás de uniforme. Será que é por isso que somos uma família bizarra? Pode ser também porque não nos casamos. Minha filha vira e mexe me pergunta a razão disso. Como explicar que pra mim casamento é apenas uma forma de tornar a separação mais burocrática? Talvez seja porque não temos carro e minha solução para levar os filhos à escola foi comprar uma patinete pra cada um, inclusive para mim mesma. É um dos melhores momentos do dia, além de saudável, econômico e ecológico, por que nos privar ?

Ao contrário do que meu filho constatou, de uns tempos pra cá tenho me sentido cada vez mais normal. É irônico: a bizarrice dos tempos pandêmicos está me transformando numa pessoa comum. Quando comentei com uma amiga mais velha que desde o confinamento estou com vontade de ter um carro e uma casa no campo, ela retrucou, dando risadas, que estou me aburguesando. Tive que concordar. Desde que a agência de locação de carros me deu um modelo superior ao que havíamos reservado, eu, que nunca dei valor pra essas coisas, ando sonhando com um carrão! Parece mentira mas é verdade: duas vezes depois de entrega-lo vi exatamente o mesmo carro, com a mesma placa, estacionado em frente ao meu prédio. Quais as chances disso acontecer? A primeira viagem que fizemos no começo do desconfinamento também me deixou querendo ter uma casa de campo. Durante três semanas alugamos uma casa antiga, renovada com bom gosto, respeitando a arquitetura da época e decorada com objetos encontrados em feiras de antiguidades. A percepção das crianças é mesmo muito diferente da nossa. Para eles, essa casa, que além de tudo tinha um jardim imenso que dava para um pasto de vacas, virou a “casa das aranhas”. A primeira vez que ouvi os filhos falando assim quase não acreditei, é tão redutor ! Mas foi isso que os marcou : as pequenas aranhas nos quartos e banheiros. Eles não sossegavam enquanto o marido não matava todas. Eu morria de dó, elas eram inofensivas, não havia a menor necessidade de eliminá-las. Mas esse virou o ritual macabro dos três antes de dormir.

Depois da “casa das aranhas” e das duas semanas de aulas entre o confinamento e as férias de verão, que recebi como um presente dos céus, alugamos outro carro. Dessa vez não houve upgrade, tive que me acomodar com o modelo abaixo do primeiro. Foi como viajar de classe econômica depois de ter voado de executiva. Mas o carrinho funcionou bem e nos levou sem problemas até nosso primeiro airbnb, uma casa sem charme, com um quintal pequeno e nenhuma vista. Dava pra ver que a proprietária renovou a casa com o intuito de alugá-la. Me senti como naquele filme, “Querida encolhi as crianças”, só que ao invés de nos perder no jardim, nós, seres minúsculos, circulávamos dentro de um catálogo da Ikea. Comentei isso com minha irmã no telefone, ela disse para eu parar de reclamar. É verdade que nessa casa não fiquei nem um pouco alérgica, contrariamente ao que aconteceu na “casa das aranhas”. Meus filhos também aprovaram a locação, que apelidaram de “a casa perfeita”. Aqui, as aranhas foram substituídas por moscas e a caça aos insetos pôde continuar, para grande alegria das crianças.

Estávamos no caminho entre a “casa perfeita” e nosso próximo airbnb quando o caçula buscou junto à irmã confirmação da evidência: somos uma família bizarra. A terceira casa que alugamos era mesmo bizarra. Ficava lá onde Judas perdeu as botas, logo após um charmoso vilarejo fantasma, na fronteira entre a Bretanha e a Normandie. O anúncio dizia que era perto de tudo, mas na verdade era longe de tudo. Tão afastado da civilização que não tinha internet e o telefone funcionava mal, com apenas um pauzinho de sinal, e somente quando colocado em cima da geladeira. A França estava desconfinada, mas sem querer demos um passo a mais no confinamento: além de não ver ninguém, perdi a possibilidade de conversar pelo WhatsApp e fazer aulas de yoga via Zoom. O jardim era imenso, embora arranjado com um gosto particular, com uma estrada de pedrinhas levando do portão até a entrada da casa e iluminado por antiquadas luminárias redondas que davam um ar kitsch à propriedade. Ao entrar tive a sensação de invadir o lar de uma vovozinha. Papéis de parede florais desbotados nos quartos, panos de prato e pesos de porta em forma de galinha na cozinha, cujas gavetas estavam abarrotadas com utensílios mais ou menos inúteis, sem mencionar as caixas de chá vazias usadas para fins decorativos e os bastões mergulhados em vidrinhos de perfumes espalhados em todos os cômodos. Essa casa era o contrário da anterior. No princípio, quis voltar para o catálogo funcional e minimalista da Ikea, mas depois me acostumei e até curti a casa, que as crianças nomearam “casa labirinto”, em função do longo corredor e das diversas portas, dentre elas duas permanentemente trancadas. Aqui tinha bastante pernilongo. Dessa vez até eu entrei na dança e me pus a matar os bichos, porque ninguém merece ficar todo picado.

Não sei se somos uma família bizarra, mas as férias foram sim bizarras. Normalmente, nessa época meu pai vem nos visitar e viajamos todos juntos para uma praia na Catalunha, nossa Meaípe. Esse ano, ele está longe dos netos num confinamento que se prolonga, a Espanha está reconfinando e nós não conseguimos pensar em nada melhor do quê alugar casas no mato via airbnb. Além de espaço para as crianças correrem longe dos vizinhos intolerantes, estávamos atrás de ar puro. A piada foi que nossa última destinação, nos confins do mundo, ficava no departamento onde os casos de covid explodiram na França, a Mayenne. Ri muito dessa ironia do destino, o marido um pouco menos.

Vamos passear no bosque, enquanto o Seu Lobo não vem

Escrevo essas linhas da casa que alugamos assim que chegamos em Paris, depois das três semanas que passamos no campo durante o confinamento. São mais de dez horas da noite e o marido acaba de pegar meu lugar no quarto ao lado das crianças. Até hoje elas não adormecem sozinhas…

Dez e meia. Mal escrevi o parágrafo acima e precisei retornar ao quarto das crianças. Elas estavam tendo uma briguinha chata, dessas em que cada um quer ser o último a falar alguma coisa, quando o pai perdeu a paciência e gritou. O caçula levantou da cama, dizendo que ia contar para a mamãe que o pai o xingou. O pai me chamou para eu xingá-lo também. Eu entrei no quarto e peguei o menininho que não parava de chorar no colo, numa tentativa de acalmá-lo. O marido me olhou possesso. A filha mais velha interveio: “Mamãe, no seu lugar eu xingava ele. Você está se deixando hipnotizar pelo choro do Enzo”. Minha filha de sete anos sempre foi mais lúcida do que eu… O marido saiu do quarto esbravejando, o pequeno não parava de chorar, queria que eu lavasse com água e sabão o machucado invisível que o pai fez na sua perna. Como não cedi, exigiu então mais uma historia. Eu já havia lido dois livros, não me imaginei abrindo outro. Acabei saindo do quarto. Agora eles estão sozinhos lá dentro com a porta fechada, a menina tentando dormir, o irmão me chamando, o marido ao meu lado dizendo: “você não vai”, e eu aqui pensando que nem depois das dez da noite consigo ter um minutinho para mim…

Outro dia na porta da escola encontrei uma conhecida que é divorciada e tem dois filhos mais ou menos da idade dos meus. Ela me disse que amou o confinamento, que foi a melhor fase da sua vida, que era maravilhoso acordar na hora que queria, não trabalhar e passar o dia inteiro com os meninos. Quando ouço essas coisas fico pensando que tem alguma coisa errada comigo, que desejei com fervor os oito dias de aulas das crianças antes dos dois meses das férias de verão, que aspiro por essas duas horinhas diárias para ler, escrever, falar no telefone, fazer qualquer coisa que não tenha nada a ver com crianças.

Ufa, o marido voltou para o quarto dos filhos, o Enzo se acalmou, acho que agora vai. Mais meia horinha deitado no chão lendo e elas dormem, com sorte até amanhã. Comprei um kindle que permite ler no escuro quando a mais velha ainda era bebê, para ficar ao lado dela sem sentir que estava perdendo tempo. Acabou virando um hábito, perdi a conta dos livros que li enquanto punha as crianças para dormir. Só para dar um exemplo, li Guerra e Paz inteiro deitada no colchão ao lado da cama dos filhos. Outro dia achei na estante um livro que tinha recomendado para o marido e me assustei com o calhamaço. Era o “A mulher foge”, do David Grossman, um dos livros que li no kindle enquanto esperava os anjinhos caírem no sono. Como li em português, o marido comprou a versão francesa. Não me dava conta do tamanho do objeto!

Agora ficou tarde, já estou com sono e me desviei completamente do que havia pensado escrever nesse post… Deixo então registrado que as crianças amaram as duas semanas de aulas depois do confinamento, que eu não fiz praticamente nada nesses dias, contrariando meu objetivo de ser produtiva, e que no primeiro dia de férias alugamos um carro e voltamos para o campo, porque criança precisa mesmo é de espaço. Não estamos muito longe de Paris, mas estamos aproveitando para visitar uma região que não conhecíamos, passear nas florestas, comprar produtos locais nas feiras dos diferentes vilarejos, enfim, viver a vidinha do campo francês em todo seu esplendor. Inclusive adquiri uma competência nova: tirar carrapatos. Descobri na farmácia um pequeno instrumento especial para tira-los sem que nos piquem, uma super invenção, fiquei me perguntando se existe isso no Brasil.

E assim vamos passeando no bosque enquanto a segunda onda do Covid não vem…  Tudo indica que virá. Acho que teremos que aprender a viver com esse vírus, a socializar à distância… que tristeza. O marido continua preocupadíssimo. Ele acompanha de perto as notícias, nada otimistas: o vírus realmente sobrevive no ar e deixa sequelas em que o teve, inclusive nos casos assintomáticos. Eu prefiro não pensar nisso. Já sofro com as notícias que me chegam do Brasil, onde ninguém sabe no quê acreditar, onde as pessoas que se confinam se sente impotentes e solitárias não só fisicamente, mas também na sua ação responsável. Onde os pretos e pobres continuam morrendo mais, agora não somente pelas mãos da policia, mas também pela ação do vírus. Onde os índios, quinhentos anos depois do descobrimento, são mais uma vez contaminados por uma doença externa, sem proteção, sem que a maior parte da sociedade se importe. Onde canalhas aproveitam da balbúrdia para aumentar o desmatamento e a destruição de tudo o que há de precioso no nosso país… E eu aqui, escrevendo sobre as dificuldades da maternidade, no conforto de uma casa de campo francesa.

Adeus confinamento campestre

Depois de um mês no campo, chegou a hora de irmos embora. O marido não queria voltar, respira melhor no campo e não suporta mais a poluição. Durante anos tentei convencê-lo a morar no mato e ele não dava bola. Agora que os filhos estão maiorzinhos e eu a fim de curtir o cosmopolitismo parisiense, decidiu virar hippie. Estamos descompassados. Depois de três meses vendo ele e os filhos todos os dias o dia inteiro, mais do quê nunca quero ver pessoas, dançar, conversar, me divertir. No marido, o confinamento teve o efeito inverso. A cidade grande se transformou num terreno hostil e poluído, onde vírus e outras imundices transitam sem pudor. Ele passa boa parte do dia no celular, atrás de ofertas de casas com jardim em vilarejos desconhecidos. Segundo ele, essa pandemia é apenas a primeira das catástrofes que a humanidade conhecerá daqui pra frente. A próxima é a poluição. E dessa vez ele não quer que sejamos pegos desprevenidos.

Foi maravilhoso passar um mês no campo, mas essa parte da quarentena não foi assim tão romântica. Além de entediada com a duração do confinamento e a sensação de estar ainda mais confinada do quê antes num momento em que a França começava a desconfinar, fiquei muito alérgica. A casa era antiga e tinha carpete no segundo andar, onde ficavam os quartos. Fui obrigada a dormir sozinha na sala, onde o chão era de pedra, o que não foi de todo ruim: por causa da alergia, eu não podia ficar ao lado das crianças até elas adormecerem como faço de costume, e de madrugada quem acordava quando elas chamavam era o pai, que dormia no quarto ao lado. Eu sabia que passaria mal quando alugamos a casa, mas como tinha um jardim imenso pensei que não seria um problema, bastaria passar o dia do lado de fora. Não contei com o fato de que nessa época do ano o ar está repleto de pólen e, pra piorar, era o período em que os fazendeiros cortam o feno! Passei um mês espirrando sem parar, apesar dos anti-histamínicos e da cortisona, que tomei escondido do sogro. Quis pedir uma receita para ele, que normalmente quebra meu galho quando preciso de um remédio, mas Albert respondeu, talvez brincando, que não seria responsável pela morte da nora. Explico: a cortisona abaixa a imunidade, deixando a pessoa vulnerável ao coronavírus. Acontece que minha situação era urgente, só quem é muito alérgico sabe o quão maravilhoso é o efeito da cortisona. Não discuti com o sogro, usei a cartela de emergência que estava guardada no fundo da nécessaire.

As crianças estavam contentes de voltar pra casa. O pequeno, de quatro anos, disse que não via a hora de descansar na sua caminha macia. É sua palavra nova, macia. Em francês é uma palavrinha um pouco complicada, moelleux. Outro dia, ele disse que meu colo era o mais gostoso porque sou moelleuse. Espero que não seja uma referência aos quilinhos ganhos durante a quarentena! Sua única preocupação era saber se, de volta em Paris, poderia encostar em tudo. Foi a pior parte da epidemia para ele: não poder colocar as mãos em tudo o que vê na rua. Minha filha mais velha, de sete anos, estava feliz com a ideia de reencontrar seus brinquedos. Ela também não via a hora de rever as amiguinhas e voltar a ter um semblante de vida social. Somos bastante parecidas.

Depois do caso do “estelionatário”, as coisas se esclareceram e continuamos frequentando a casa dos sogros quase todos os dias. Quer dizer, eu e as crianças. O marido não estava dando conta dessa situação em que não vivíamos na casa dos pais dele por causa da epidemia, sendo que já estávamos no campo há mais de duas semanas e que as crianças brincavam e rolavam juntas tão logo se viam. Era um elefante na sala que todos fingiam não ver. Sabíamos que não éramos bem-vindos. Obviamente, isso foi mais duro para o marido, que é o filho, do quê pra mim. Eu estava contente de poder me refugiar na nossa casinha, ainda que alugada, onde tinha liberdade de fazer yoga, tirar uma soneca com meu filho e tomar banho quando bem entendia. Porque a sogra sempre criticou essas coisas. O simples fato de eu preferir tomar banho antes de deitar, e não ao acordar, como ela, a irritava.

Quando fomos nos despedir, senti um pouco de pena dos sogros, da cunhada e até dos sobrinhos. O sogro, que sempre foi amigável e gostava de fazer piadas, anda taciturno, com medo da morte. A sogra continua a mesma : forte e cheia de veneno. A cunhada parece ter tomado o caminho das mulheres que se tornam amargas ao envelhecer. E as crianças… o de oito anos estava gentilíssimo, muito feliz de brincar com meus filhos, tanto que dava um pouco de dó… passou mais de dois meses com a mãe e o irmão dentro de um apartamento e agora que partimos não verá mais ninguém além deles e dos avós durante os próximos três meses. O de cinco está obcecado com o presente que não demos porque fez aniversário durante a quarentena. Só fala nisso. Vendo a impaciência do menino, encomendei o brinquedo pela internet, mas ele não deu sorte… todos os dias recebo um e-mail do vendedor dizendo que houve um atraso com a entrega.

Antes de irmos embora o sogro, que gosta de discorrer sobre questões medicinais e de sociedade, veio me explicar a “síndrome da cabana”, patologia em que as pessoas, nostálgicas do confinamento, não conseguem voltar a ter uma vida normal. Foi estranho ouvi-lo falar como se não fosse exatamente o que ele, a mulher e a filha estão vivendo. Os três continuam saindo de casa exclusivamente para ir ao supermercado, lavando e colocando os produtos comprados em quarentena dentro de casa, e não encontraram mais ninguém além da gente à distância no jardim.

Eu, ainda no campo, comecei a planejar o retorno. Agendei as aulas de pônei da minha filha e confirmei que nas duas quartas-feiras que nos restam antes das férias eles irão ao “centro de atividades” que frequentam normalmente (aqui as crianças não tem aula nas quartas-feiras). Se no começo me pareceu fora de questão enviá-los para a escola com o protocolo sanitário imposto pelo governo, agora só penso nisso. Conversei com a professora do caçula e com algumas amigas cujos filhos já voltaram às aulas e elas me garantiram que, apesar de todas as regras, as crianças estão felizes de voltar pra escola. Elas também devem estar cansadas da gente. Mas a ultima notícia que tive é que para meus filhos as aulas não recomeçarão antes de setembro…

Estou sonhando com minhas duas quartas-feiras de liberdade antes das férias, imaginando o que vou fazer : cortar os cabelos, fazer as unhas, uma massagem ou aula de yoga… decerto algo só pra mim, pra me ajudar a me sentir bem nesses dias que antecedem meus 40 anos! Falando nisso, ontem o marido fez um comentário fabuloso ao me ver saindo de casa : “como você está bonita, com cara de novinha. Já sei, é porque a máscara esconde suas rugas!”. Termino então com um aviso: o excesso de sinceridade é nocivo aos casais.

 

Estelionatário

Os dias passam tranquilos no campo. Continuamos em busca da organização perfeita do dia da marmota, um pouco mais relaxados do quê quando estávamos no apartamento. Por hora deixamos a escolarização das crianças de lado, acredito que fotografar vacas e correr atrás dos calangos são uma forma de aprendizado tão válida quanto as outras. Inclusive fomos agraciados com duas visões extraordinárias da vida na natureza.

A primeira foi alguns dias atrás. Eu queria mostrar ao marido um lugar perto de onde estamos, um pequeno aglomerado de casas que descobri por acaso, quando me perdi ao voltar do supermercado, e achei muito charmoso. O marido resmungava e falava palavrões, fiel ao parisiense que é; não queria perder tempo vendo nada, não entendia porque não voltávamos rápido pra casa. Eu respirava fundo, me esforçando pra ignorar as reclamações dele, quando uma ave de rapina enorme passou baixinho com uma serpente enrolada nas garras. Ela atravessou a estrada de terra bem na nossa frente e desapareceu na plantação de trigo ao lado, foi lindo! O marido desceu do carro, encantado, e se dirigiu ao lugar onde a ave pousara. Ela alçou voo, dando-nos mais uma oportunidade de aprecia-la. Além de maravilhada com a cena, também me senti feliz por ter continuado dirigindo, apesar dos protestos do marido. “Você não poderia saber”, ele replicou. Mas não é isso intuição? Avançar mesmo quando os outros dizem que estamos errados porque algo em nós diz que é o caminho a seguir?

A outra cena é mais trivial, ocorreu hoje de manhã. Estávamos almoçando no jardim quando o gato da hospedagem avançou devagarzinho e saltou em cima de um camundongo. Foi minha filha que mostrou pra gente. Eu não quis olhar, mas dava pra ouvir o ratinho protestando, quirck, quirck. Segundo a narração ao vivo dos filhos, o gato mordiscou o camundongo durante alguns minutos e depois o enterrou vivo. “É a geladeira dele”, o pai explicou aos pequenos, que observavam admirados. “Coitadinho”, comentei. Minha filha replicou na hora, indolente: “Por que? Você nem gosta de rato!”. Fiquei boba com o sangue frio das crianças.

E assim corriam os dias, entre ações corriqueiras e românticas como ir até um povoado medieval de 700 habitantes e parar o carro em frente à igreja do século XIII para comprar pão, ou estender roupas no varal para que sequem ao sol, o que também me remete à um outro século, acostumada que estou com a secadora no apartamento. Ao final do dia levo as crianças para brincar com os priminhos, apesar dos protestos do marido, que acha que deveríamos nos distanciar da família dele. Ele tem razão, mas não resisto aos pedidos dos filhos, que durante dois meses não viram nenhuma outra criança além deles mesmos.

Tudo parecia em harmonia até que ontem, no meio da janta, o marido olha o telefone e me pergunta, abismado: “Você insultou minha irmã?”. Hein? Ele me mostra a mensagem. “Estelionatário”, estava escrito numa conversa entre nós três, proveniente do meu telefone. Logo abaixo a reação da cunhada: “??? Essa palavra quer dizer aproveitadora? Não entendi.” Na hora soube que algum dos meus anjinhos pegou o celular e escreveu letras aleatórias, que o corretor transformou em “estelionatário”. (Na verdade a palavra foi outra, com sonoridade parecida mas ainda mais surreal, uma palavra que até então eu sequer sabia que existia. Mas o marido me proibiu de escrevê-la aqui, ele tem medo da irmã fazer uma pesquisa na internet e descobrir o blog. Aí sim, estarei em maus lençóis…).

Fato é que a cunhada jogou “estelionatário”, digamos, no Google e encontrou a tradução profiteuse, “aproveitadora” em português. Liguei para resolver o mal entendido. “Eu nem conhecia essa palavra”, expliquei. Ela foi super fria, não me pareceu convencida. Demorei pra entender que ela não duvidava que foram as crianças que escreveram o insulto, mas estava zangada porque achava que minha filha tinha repetido o que eu dizia sobre ela. Quer dizer, a cunhada pensa que em casa eu a trato de “estelionatária”. Fala sério! Era o que me faltava. Desligamos o telefone e mais uma vez fui invadida pela sensação que sempre tenho quando estou com a família do marido, um aperto no peito, uma culpa sem razão, a impressão de precisar ficar provando que não sou a pessoa terrível que eles imaginam.

Fiquei chateada com o mal entendido, até porque ainda estávamos nos recuperando da briga do verão passado. Decidi ir à casa dos sogros no fim da tarde, levar as crianças para brincar como nos outros dias e aproveitar para esclarecer a situação em pessoa. Quando entrei no jardim a cunhada e os sogros não me olharam, coube a mim cumprimenta-los primeiro. “Bonjour Chantal! Bonjour Jeanne! Bonjour Albert!”, disse o mais alegremente que pude. Responderam friamente e eu fiquei ali, fazendo de tudo para ser gentil, enchendo balões de água para as quatro crianças brincarem e esperando o momento oportuno para abordar o assunto. Já estava quase me rendendo ao hábito francês de jogar a poeira pra debaixo do tapete e seguir a vida com relações falsamente cordiais à espera de que o tempo talvez resolva as coisas quando não me aguentei e disse: “Sinto muito pelo mal entendido de ontem, mas você entendeu que eu nem conhecia aquela palavra? Ninguém fala daquele jeito”. Jeanne levantou o olhar do livro e respondeu, condescendente : “Você disse isso ontem. Se você diz, eu acredito em você”, e retomou a leitura, como se fosse um ato de benevolência da sua parte crer na minha palavra. Quis explicar que ainda que eu tratasse as pessoas de “estelionatário” no dia-a-dia, minha filha de sete anos não saberia escrevê-lo, mas ela já tinha encerrado o assunto. Chantal tinha se aproximado e escutava atenta.

Quando me rebelei com a sogra, anos atrás, o sogro me disse, na única conversa realmente franca que tivemos em todos esses anos, que a paranoia corria na família de Chantal. Sua avó e sua mãe haviam sido paranoicas, e ela também o era. Quando contei isso ao marido, ele respondeu que Albert, que é médico, tinha mania de diagnosticar e estava exagerando. Mas alguns meses atrás, quando fui falar da sogra para minha psicanalista, em menos de cinco minutos ela afirmou, categórica: “não se deve tentar agradar uma pessoa paranoica”. Detalhe: eu não tinha mencionado esse termo. Hoje, com o caso do estelionatário, tive a prova de que não somente Chantal, como também sua filha, Jeanne, são mesmo paranoicas. E eu devo ser a neurótica que fica tentando entender, esclarecer… repetidamente. Gostaria de ter puxado minha avó paterna, ela já teria mandado esse povo todo à merda faz tempo.

Para retomar o tom animalesco com que comecei esse texto, sou um cão São Bernardo tentando encontrar meu lugar numa família de gatos siameses. Mas aos poucos vou ficando esperta. Em meio à todo esse aborrecimento, por exemplo, fiquei feliz por ter algo sobre o que escrever. Vida longa à minha sogra e cunhada francesas, que não decepcionam. E que elas nunca descubram que, se não as trato de “estelionatário” em casa, não me privo de contar tudo aqui.

Quatro semanas

Quase quatro semanas de confinamento. Eu ainda tenho esperanças de que ele dure apenas dois meses, o que significaria que já estamos na metade. No começo, duas semanas me parecia enorme e agora estou escrevendo “apenas dois meses”. É uma das características desse confinamento: nossa perspectiva das coisas muda numa velocidade assustadora. Poucas semanas atrás eu achava que as pessoas usando máscara exageravam. Um médico havia me dito que a máscara só fazia sentido quando usada por pessoas com sintomas, o que me pareceu sensato. Confesso que eu experimentava uma espécie de auto-satisfação ao passar por pessoas mascaradas. Ao menos não sou hipocondríaca, pensava, sentindo-me esperta por não me deixar levar pelo pânico suscitado pelos meios de comunicação. Hoje é tarde para encontrar máscaras no mercado e estou sofrendo por não possuir talentos de costureira.

Ao contrário de mim, meu marido é um vanguardista da cautela em tempos de epidemia. Ele chegou a encomendar uma caixa de máscaras pela Amazon quando o vírus se expandia na Itália mas ainda parecia sob controle na França, mas ela nunca chegou. Nesses dias, ele releu A Peste de Camus e concluiu, solene: os que sobrevivem não são os que se acham inteligentes e acima do medo coletivo, mas os que veem longe e agem com precaução. Não dei muita bola, ele sempre foi prudente demais pro meu gosto.

Poucos dias antes do confinamento, eu cheguei a apertar a mão do meu ex-orientador de doutorado e omiti esse acontecimento banal do meu marido. Não porque ele é ciumento, mas porque já estava me preconizando o distanciamento social. Mas não havia a menor chance de eu dizer ao meu ex-orientador, o equivalente do Mestre dos Magos na minha vida, que não queria apertar sua mão. Acho que agora ele também não deve estar apertando a mão de mais ninguém… Quando o Macron enfim pronunciou o confinamento, meu marido respirou aliviado: o mais difícil não era ficar em casa, mas tentar me segurar, disse. Ele estava enfurecido porque, três dias antes, eu tinha pego o metrô e ido à uma aula de yoga. E eu estava quase sufocando com a perspectiva de ficar duas semanas dentro de casa com ele e as crianças.

Eu não sei se hoje o marido diria a mesma coisa. Ele já está de saco cheio de mim, das crianças, de toda essa situação… e eu dele, diga-se de passagem. Outro dia li num artigo que os primeiros dez ou quinze dias de confinamento são os mais simples, entre outras coisas porque temos objetivos. Eu, por exemplo, pensei que seria o momento ideal para uma faxina de primavera. Quando disse isso ao marido, toda serelepe, ele virou os olhos aos céus e disse: “Além do confinamento, ela quer me pôr pra fazer uma faxina de primavera”. Achei essa atitude péssima. Hoje, estou atrasada com a faxina simples mesmo. Às vezes ainda tento, imagino a Marie Kondo, com aquele seu jeitinho meigo e simpático, ao meu lado, respiro fundo e começo alguma empreitada, como lavar todas as proteções de colchão da casa, ou todos os bichinhos de pelúcia das crianças. Mas com o passar dos dias estou me desencorajando… Quatro dias atrás comecei a limpar o armário do banheiro, que tem quatro portas. O projeto, realista e sem grandes ambições, era limpar uma por dia, enquanto as crianças tomam banho. Hoje faltou-me o ânimo para limpar a quarta. Preferi usar o tempo do banho das crianças cantando mantras e cozinhando, para desespero do marido, que morre de medo dos vizinhos acharem que somos Hare Krishna.

Se estou escrevendo aqui sobre esse desencorajamento progressivo, é porque tenho a sensação de que não sou a única passando por isso. Acho inclusive que esse estado de desânimo concerne também os pequenos, e na verdade foi isso que me deixou alarmada. Há alguns dias meu filho de quatro anos não quer sair de casa e hoje foi a vez da minha filha de sete não querer passear. Eles não mudaram de ideia nem quando disse que se não saíssem um pouco não teriam direito de assistir um desenho animado. Aí assustei.

Essa manhã todos acordamos mais tarde do quê de costume. Minha filha mais velha, que não faz a sesta há anos, também dormiu depois do almoço. Mais tarde ouvi uma amiguinha dela dizer, ao telefone: “passei o dia inteiro de pijama”. Acho que esse é o perigo que está à nossa espreita e um dos grandes desafios para os pais. Manter o entusiasmo. Sem dúvidas seria mais fácil se soubéssemos quando tudo vai acabar.

No começo ouvi umas pessoas dizerem que não queriam “fracassar a quarentena”. Mas não seria igualmente absurdo ter sucesso na quarentena ? Pessoalmente, eu já não tenho grandes planos para o confinamento, como melhorar minha relação com o marido, terminar o livro que anda dentro da minha bolsa há meses porque me comprometi a fazer uma resenha dele, ou jogar fora tudo o que é inútil nessa casa, não sem antes agradecer cada objeto com um sorriso. Agora meu único objetivo é garder la morale, como dizem os franceses. Ou seja, não me deixar abater e ajudar meus filhos a continuarem em forma, mesmo se minha vida é mais fácil quando eles estão prostrados na frente da televisão.

Um último pensamento : não é interessante que muitos de nós, ao se aproximar dos quarenta, tem esse sentimento de que fracassamos na vida? Fracassar a quarentena, fracassar aos quarenta… romantizar a quarentena, desromantizar… para finalmente reerguer o queixo e prosseguir, na quarentena como aos quarenta.

Pollyanna

Hoje acordei às cinco da manhã com uma palavra em mente: Pollyanna. Não me lembro se cheguei a ler esse livro, mas me lembro da minha mãe citando essa menina durante toda a minha infância. Para quem não conhece, Pollyanna é uma órfã pobre capaz de se alegrar em todas as situações. Sua brincadeira preferida é o jogo do contente, que consiste em ver o lado bom de absolutamente tudo. Por exemplo, se minha memória não falha, quando Pollyanna pede uma boneca no natal e ganha muletas, ela fica feliz por não precisar usá-las.

Pois bem, hoje eu estava disposta a brincar de Pollyanna confinada. Me pareceu uma boa ideia escrever um post sobre isso, após o texto um pouco sombrio que publiquei ontem. Aí o dia foi acontecendo. Pra começar as crianças acordaram super cedo, pouco tempo depois de eu ter conseguido adormecer novamente. Três semanas atrás era uma luta tirá-los da cama. Punha musiquinha, fazia o café da manhã preferido, às vezes gritava, tudo para terminar correndo pelas ruas e chegar ao portão da escola no último minuto do segundo tempo. Agora que não tem urgência nenhuma, muito pelo contrário, os danadinhos acordam com as galinhas, como se não quisessem perder nem um minuto dos nossos dias de quarentena.

No supermercado, meia hora após a abertura, já tinha fila, do lado de fora, porque estão limitando o número de pessoas lá dentro. Todos de máscara menos eu, que ainda me pergunto onde conseguiram comprar essas máscaras… todos com cara de poucos amigos, respeitando a distância mínima de 1,5 metros entre si. Tudo bem, até aí nada anormal, dentro da anormalidade que estamos vivendo. Ao entrar, uma novidade: o segurança, alto e forte como em geral são os seguranças, colocava um pouco de álcool gel nas mãos de cada pessoa que entrava. O álcool gel dele era cor-de-rosa e vinha em um frasco da Minnie. Ri comigo mesma. Nas compras, uma coisa ruim e outra boa: as prateleiras de farinha continuavam vazias, mas consegui comprar um pacote de garrafas de leite, que estava em falta há dias. Pollyanna chegou em casa feliz com esse começo de manhã.

Em meio aos comentários sobre os textos que publiquei aqui, todos eram gentis, apenas um agressivo. Pollyanna ainda estava ganhando, embora um pouco incomodada. O filho pequeno, de quatro anos, teve alguns acessos de raiva durante o dia, inclusive um bastante difícil, em que jogou tudo no chão, mas a grande, de sete anos, tinha anunciado logo cedo que iria se esforçar para ser boazinha o dia todo e estava cumprindo sua promessa. O balanço continuava positivo, apesar do stress emocional.

Depois da sesta assistimos juntos um lindo filme do Studio Ghibli (fica a dica pra quem tem crianças e Netflix em casa) e chegou a hora do nosso passeio no bosque. À essas alturas do campeonato Pollyanna estava com a corda toda. Minha filha inventou uma brincadeira em que ela era um bebê tigre branco e eu uma menininha que o encontrava perdido na floresta e durante todo o passeio vivemos as aventuras dos amigos inseparáveis, até que no final ele encontrou seus pais e a história acabou.

Estávamos fazendo uma coroa de margaridinhas nos dez minutos restantes, Pollyanna ficaria orgulhosa se nos visse, quando um carro parou ao nosso lado e a policial anunciou: vão pra casa, o bosque está fechado desde as 15h por tempo indeterminado. Meus olhos se encheram de lágrimas. Lá se vai nosso pequeno privilégio, lá se vai o momento reconfortante do dia, lá se vai o luxo de escutar os pássaros e observar as árvores se abrindo em flor nesse começo de primavera…

Pois agora vou brincar de Polyanna debochada. O comissariado da polícia fica no caminho que vai do bosque à minha casa. Ensinei a música pra minha filha e, quando passamos em frente, cantamos alegres: “Alo polícia, eu tô usando, um exocet, calcinha”. Espero que ninguém me chame de brasileira egoísta e anarquista, nem que tentem me explicar que não é culpa da polícia, que o confinamento é para o bem de todos, etc, etc. Ser Pollyanna não é pra qualquer um.

A romantização da quarentena

“La romantización de la cuarentena es privilegio de clase!”, foi uma das coisas mais corretas sobre o confinamento que li até agora.

A segunda foi um diálogo entre um senhor e uma mulher num meme que me enviaram por WhatsApp:

Ele: – Li um artigo com dicas de astronautas para suportar o confinamento. Eles são especialistas nisso, passam muito tempo em estações espaciais.

Ela: -Tem criança em estação espacial?

Ele: …

Ela: Enfia no cu, o artigo”.

Voltando à romantização da quarentena, li essa frase numa faixa, dependurada numa varanda, numa foto postado por um conhecido. Não sei quem é o autor, mas concordo plenamente. É fácil romantizar a quarentena quando estamos em uma casa de campo, com ar puro e bastante espaço para as crianças correrem, por exemplo. Aliás, passo o ano inteiro sonhando com essa situação : me confinar no meio da natureza com a família (porque afinal as crianças ainda estão pequenas para serem enviadas para colônias de férias; caso contrário, sonharia com outras coisas).

Poucos dias antes do Macron decretar a quarentena, circularam rumores de que isso aconteceria. Presenciei com uma pontada de inveja a agitação dos pais dos amigos dos meus filhos, enchendo os porta-malas para passar uma temporada indefinida no campo. Nessa hora até arrependi de ter, até hoje, “seguido o coração”, como sempre me aconselhou meu pai, e não o dinheiro. Aos quase quarenta anos não tenho nem carro, quem dirá casa de campo.

Mas ainda assim sei que sou uma privilegiada. Temos 70 metros quadrados para quatro pessoas, não é muito, mas também não é pouco. Nosso apartamento é mal isolado e temos um vizinho escroto que bate com a vassoura nas paredes cada vez que as crianças correm de um cômodo para o outro (ele até mandou a polícia na nossa casa, mas isso fica para outro post), mas ao menos existem cômodos entre os quais correr. E, principalmente, moramos ao lado de um dos bosques da região parisiense, o que nos possibilita passeios diários nessa época deliciosa do ano (aqui é começo da primavera). Temos muita sorte, porque os deslocamentos foram limitados a uma distância de 1km do domicílio e o bosque fica a precisamente 0,8km da minha casa (fui correndo verificar assim que restringiram a distância dos passeios). Segunda passada, o governo limitou ainda mais os deslocamentos e fechou parcialmente os dois bosques de Paris. Felizmente, a parte do bosque que fica perto da minha casa permanece aberta. Foi por um triz.

Ontem fui controlada pela polícia pela primeira vez. Foi idílico: estávamos no meio do bosque, em frente a um lago, e dois jovens policiais se aproximaram, majestosos, sobre cavalos imensos e lustrosos. Nem aguentei esperar eles chegarem até a gente, fui logo me aproximando e perguntando: vocês gostariam de me controlar? Algo confuso, o policial fez que sim com a cabeça e pediu para ver minha declaração e identidade. Eu estava com as duas preparadas na bolsa, e a única coisa que ele pôde dizer foi: “Cuidado para não passar do horário. Seria uma pena ser verbalizada no final do dia”.

Entre nós, se eu pude me precipitar até o policial e mostrar o cavalo para meu filho, encantada com a pequena novidade na nossa rotina, foi porquê: 1) tenho uma impressora para imprimir a declaração; 2) tenho um documento de identidade válido; 3) tenho um domicílio para marcar na identidade. Parecem coisas normais, mas infelizmente muitas pessoas nem isso têm. Semana passada, liguei para a faxineira para assegurar-lhe de que continuaria pagando suas três horas de faxina semanais durante o confinamento. Aproveitei para perguntar como estava e aconselhei-a dar uma saidinha todos os dias. Ela me respondeu que adoraria fazê-lo, mas não pode, porque não tem impressora nem documentos. Contou que outro dia, não aguentando mais ficar em casa, se aventurou, mas o passeio não durou nem dez minutos. Assim que viu a polícia ao longe, deu meia volta e correu pro apartamento que divide com outras oito pessoas.

Conversando com uma amiga ontem à noite, ela me disse que ouviu na rádio que a polícia estava controlando os sdf (sigla para “sem domicílio fixo”, que é como denominam as pessoas que moram na rua aqui. Prefiro esse termo a mendigo, que me parece pejorativo e determinista). Essa amiga contou o caso de um homem que foi controlado e teve que pagar a multa de 135 euros porque estava sem a declaração. O homem tentou explicar que morava num apartamento de dois cômodos com a mulher e as cinco crianças e a situação ficou tão difícil que se mudou para o carro. Estava só tomando um solzinho sentado na calçada em frente ao carro. Mas a polícia foi impiedosa, e ele levou a multa que representa uma parte importante do orçamento da sua família.

Essa manhã meu marido, que acompanha o avanço da pandemia no mundo de maneira obsessiva, estava me falando sobre como os americanos estão lidando com ela. Ele me contou que em Nova York estão fazendo os moradores de rua dormir em lugares de estacionamento, para se assegurarem de que eles mantém a distância mínima necessária entre si. Fiquei imaginando um grande tabuleiro de xadrez, com os sem teto dispostos nas vagas de estacionamento de maneira intercalada. Achei essa gestão da pobreza, do espaço e dos indivíduos bastante surreal, para dizer o mínimo.

Esses exemplos confirmam: a romantização da quarentena é um privilégio de classes. E a pandemia, como todas as catástrofes, penaliza sobretudo os mais vulneráveis. Tendo dito isso, continuarei fazendo bolinhas de sabão e confeccionando coroas de flores com as crianças no bosque. Porque, por mais importante que seja termos consciência dos nossos privilégios de classe, sofrer além do necessário não alivia em nada o sofrimento dos outros.