Segunda-feira as crianças voltaram às aulas. Sim, domingo, 14 de junho, o presidente anunciou em rede nacional que na semana seguinte todas as crianças retornariam à escola, obrigatoriamente. Escutei essas palavras com um misto de alívio, alegria, surpresa e consternação. As primeiras sensações são óbvias, estava com os filhos desde o começo de março e não via a hora de ter um tempinho para cuidar da minha própria vida. Surpresa porque eu não imaginava mais que uma volta às aulas fosse possível, duas semanas antes das férias de verão. Já havíamos inclusive marcado um piquenique de despedida com a turma da minha filha. E consternação porque sabia que os diretores, professores e demais funcionários das escolas estavam tomando conhecimento da volta às aulas, com caráter obrigatório, ao mesmo tempo que a gente!
Minha filha e eu acolhemos a notícia com alegria. O mesmo não pode ser dito do meu filho de quatro anos. Ele ficou grudado em mim durante toda a quarentena e não estava com pressa de reganhar um pouco de autonomia. Tentou de tudo pra não ir pra escola. “Mas tem o coronavírus”, foi seu primeiro argumento. Como não funcionou, declarou que estava doente e “as crianças doentes não vão pra escola”. Depois avisou, já nervoso, que tinha um cartaz na porta da escola falando que é proibido ir à aula. Por fim, prometi levar um kinder ovo com surpresa para o lanche. O rapazinho, que é chocólatra, não resistiu. Sou contra essa tática de recompensa, ainda mais com um produto industrial cheio de açúcares, mas o tempo estava passando e ele se recusava a pôr roupa. Eu não podia correr o risco dele perder um dos oito dias de aula antes dos dois meses de férias.
Assim que fiquei sabendo que as aulas retomariam, anulei o Airbnb que tínhamos reservado para o final de junho. A volta do campo para a cidade, da casa com jardim para o apartamento com vizinhos, foi tão radical que mal colocamos os pés aqui, começamos a procurar outra casa no mato para alugar. O sentimento de voltar para uma metrópole classificada “zona vermelha” do covid após semanas confinados com as vacas fica claro na experiência de uma amiga. Ela, o marido e os dois filhos correram para a casa de campo tão logo o presidente anunciou o começo do confinamento, em março, antes que o impedimento de nos afastarmos mais de um quilômetro do domicílio entrasse em vigor. Ficaram em quarentena durante dois meses e meio até que, por motivos profissionais, precisaram voltar. Ao chegar desceram do carro e, enquanto tiravam as malas do bagageiro, a filha de sete anos correu para digitar o código de entrada do prédio. A mãe falou para a menina tirar a mão dos botões, o que ela fez, levando os dedos instantaneamente à boca. A ideia dos coronavírus indo dos imundos botões ao interior da criança enlouqueceu minha amiga, que agarrou os bracinhos da menina e a sacudiu, berrando e chorando ao mesmo tempo. “Tive uma crise de nervos. Explodi como não explodia há anos, desde antes de ser casada, desde antes de ter filhos”, ela me contou, virando-se em seguida para a filha e pedindo perdão mais uma vez.
O marido e eu também sentimos essa apreensão quando chegamos em Paris. A princípio foi quase chocante ver tantas pessoas na rua, no metrô, no bosque, no supermercado. Gente de máscara, gente sem máscara, gente usando a máscara abaixo do nariz, abaixo do queixo ou dependurada em uma orelha. Gosto de observar a criatividade das máscaras de tecido, suas diferentes formas e cores. Mas vejo também muitas máscaras descartáveis. Essas me dão nervoso, principalmente desde que li que levam 400 anos para se decompor. Difícil acreditar que a natureza vai sair ganhando com a pandemia.
O desconfinamento traz sentimentos antagônicos. Por um lado, temo uma segunda onda da doença e me sinto segura quando vejo as pessoas de máscara. Ontem mesmo li que 88% das mortes por covid19 na França poderiam ter sido evitadas caso as pessoas tivessem usado máscara desde o princípio. Por outro, quero festejar a chegada do verão e o fim da epidemia, passear pelas ruas respirando livremente. Adotei um meio termo: uso a máscara nos comércios e transportes, mas não na rua. Confesso que algumas vezes esqueci a máscara em casa e fiz compras sem… Numa dessas vezes, como tinha acabado de lavar as mãos e tenho eczema nos dedos, hesitei em usar o álcool gel disponível na entrada do supermercado (antes um segurança colocava o gel na palma das mãos de cada pessoa que entrava. Agora é responsabilidade de cada um fazê-lo). Enquanto ponderava se limparia ou não as mãos novamente, uma moça passou na minha frente e entrou, apressada. O velhinho atrás de mim resmungou: “ela não usa máscara e não lava as mãos!”. Percebi o medo no comentário dele e passei o gel, envergonhada por estar sem a máscara…
Nesses primeiros dias de verão, oscilamos entre normalidade e tempos de epidemia. Às vezes relaxamos um pouco e em seguida nos arrependemos. O desconfinamento tem sabor doce-amargo. Aos poucos estou revendo os amigos. À distância, sem beijinhos nem aperto de mãos. Progressivamente. Primeiro conversei com um conhecido que cruzei no bosque, de longe. Depois almocei na varanda de um restaurante com uma amiga, tomando cuidado para que nossas cadeiras não ficassem muito próximas. No dia seguinte aceitei um convite para jantar na casa de outra amiga. E amanhã festejo meus quarenta anos com um pé dentro e outro fora da quarentena.
O marido está se desconfinando ainda mais vagarosamente do que eu. Estamos juntos há quinze anos e temos dois filhos. Essa semana ele tinha um trabalho difícil para fazer, então resolvi agradá-lo. Como precisava passar as máscaras de tecido, tirei do fundo do armário a mesa de passar roupa, presente da sogra, claro, e me ofereci para passar uma camisa. Estava toda orgulhosa passando a camisa de linho branca quando meu filho chamou. Fui ajudá-lo e expliquei o que ele me perguntou com paciência, me sentindo uma excelente mãe e esposa. Quando voltei para a mesa de passar, encostei o ferro quentíssimo na camisa preferida do marido e senti o cheiro de queimado. Levantei o ferro e vi duas imensas marcas marrons! Desnecessário dizer que a camisa foi direto para o lixo. Dois dias mais tarde quis agradá-lo novamente, dessa vez para o seu aniversário. Fiz um bolo e, como ele lê muito, decidi comprar um livro. Contei para a livreira que estava procurando um presente para uma pessoa que aprecia autores como Philip Roth, Jim Harrisson e Jonathan Frazen. Ela respondeu que tinha o livro perfeito e me propôs uma autora inédita. Folheando o livro rapidamente vi que, na orelha, a escritora era comparada à Roth e Frazen. Foi o suficiente para me convencer. Comprei sem ao menos saber do que se tratava a história, crente que o marido adoraria a descoberta. Ele rasgou o embrulho satisfeito e começou a ler a contracapa em voz alta: “Rachel Fleishman larga Toby Fleishman, depois de quinze anos de vida comum e dois filhos. Mas como Toby pode aceitar uma vida de pai solteiro quando pensava viver com a esposa até a morte?”. Quase morri, parecia piada de mau gosto. “Tem certeza que você não escondeu uma faca no livro?”, ele perguntou, enquanto ríamos da trapalhada. Acho que vou deixar essa ideia de agradar o marido pra lá. É como querer ser uma boa mãe, sempre dá errado.
Haha! Rindo do finalzinho! Ooo vida!
Me identifiquei muito como vc descreveu os dias atuais. Essa oscilação entre o devo/não devo, culpa… ainda mais agora lendo q os números estão aumentando de novo!
Um beijo e um lindo dia pra vc!
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Obrigada querida!!! Beijo grande pra você ❤
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