No campo com a sogra, parte 2

Na manhã seguinte, acordo doente. Chantal e Albert estão alvoroçados, vão receber um casal de amigos de Jeanne. Quando desço as escadas, às quase dez da manhã, a sogra, que normalmente dorme até mais tarde sob o efeito de soníferos, já está de pé e passa a ferro a proteção de algodão branco das cadeiras da sala de jantar. Ela me lança um olhar de pura reprovação. Cogito explicar que acordei pela primeira vez às seis da manhã, com o bebê, mas por volta das oito e meia supliquei ao marido que saísse da cama e me deixasse dormir um pouco, pois havia passado uma noite horrível, assoando o nariz, delirando com a febre, procurando em vão uma postura confortável. Deixo pra lá, de nada adiantaria. Digo apenas, em um sussurro, que perdi a voz. Ao que ela responde: “ – Melhor assim”.

Dou bom dia à Jeanne, que está sentada na mesa tomando café da manhã. Digo-lhe que estou doente como não me ocorria há anos. Ostentando um semblante quase tão impassível quanto o da mãe, ela não se dá ao trabalho de responder. A expressão emburrada salienta a magreza e as olheiras escuras que vieram habitar seu rosto desde a morte do marido. Seus cabelos, negros pontuados por fios brancos que antes não estavam ali, estão desordenados, presos num rabo baixo desleixado. As costas arqueadas parecem penar para sustentar o peso das roupas largas. Sinto-me sem jeito por ter evocado meu próprio mal-estar.

As crianças correm no jardim. Indisposta, deixo-me cair no banco de madeira e observo. O céu está azul, sem sinal de nuvens. Nessas ocasiões, os europeus correm para fora das casas para não perder nem um instante dos raios de sol. Enfastiada dos meses cinzentos, eu também cobiço, há muito, dias como esse. Hoje, porém, daria tudo para ficar na cama, recuperando do vírus que sobrepujou meu organismo durante a noite.

Jasmim, minha filha mais velha, pede que eu a empurre na balança. Exausta, proponho fazer uma coroa com as margaridinhas que pontuam o gramado de branco. A menina joga as flores no chão e corre atrás de Jeanne, que se posiciona em frente à balança, prestes a empurrar seus filhos, David e Anton. Tomo ímpeto para me levantar, mas parece que meu corpo foi atropelado por um dos imensos tratores verdes que transitam regularmente na estrada em frente à casa. Forço a garganta e, com a voz fraca, esboço desculpas. Jeanne continua carrancuda. Ouço a voz do meu marido na cozinha perguntando onde estou, e a resposta desdenhosa de Chantal: “- Sua mulher está muito doente pra cuidar da própria filha!”. Minhas bochechas febris ficam ainda mais quentes. Repito mentalmente um mantra, num esforço de alto controle. A raiva passa, mas em meu peito cresce a opressão silenciosa que torna difícil respirar, a culpa muda e indefinível que, aos poucos, toma conta de mim cada vez em que estou na casa de campo dos sogros.

Os convidados de Jeanne chegam e o almoço se revela um verdadeiro suplício. Aperitivo, entrada, prato principal, queijos, sobremesa, café… As horas que passo sentada naquela mesa, lutando em silêncio para não esvanecer, retirando e tornando a colocar o casaco, parecem intermináveis. Como gostaria de pedir licença e subir para o quarto, proeza impossível na casa de Chantal. Lembrei-me de certa vez em que estávamos ali, Jasmim acabara de completar um mês e acordava a noite toda para mamar. Cada hora de sono contava, mas eu devia esperar o fim dos longos jantares para poder me deitar, como se não estivesse em pleno puerpério. Chantal, que nunca amamentou, me fazia pagar minha escolha. Até mesmo meu sogro, que é médico, se incomoda com o fato de eu amamentar. Ao longo desse almoço interminável, a única vez em que ele me dirigiu a palavra foi para dizer, provocativo : “Tenho pena de você, que amamenta e não pode provar esse vinho maravilhoso”. Ao que respondi, com uma ousadia ainda inédita: “Não é porque estou amamentando que não estou bebendo, mas porque estou realmente doente!”. Nesse ambiente repressivo, saboreio essas pequenas repartidas como conquistas. Outro momento vitorioso foi quando Jasmim exclamou, tão logo Chantal colocou as batatas sauté no seu prato: “Não quero, é batata podre!”. A sogra, claro, nada disse na frente dos convidados. Mas lançou um olhar furioso da minha filha ao meu sogro, em busca de cumplicidade. Como se a exclamação típica de uma criança de quatro anos fosse mais uma prova da selvageria da minha prole. Ela também me fuzilou com o olhar, esperando que eu repreendesse Jasmim. Foi minha vez de fingir que nada acontecera. Como poderia sabotar o único momento delicioso do almoço?

A tarde passa arrastada. Conto as horas para o jantar, o banho das crianças, a história de boa noite de Jasmim, a mamada final de Enzo, até que finalmente me desfaleço na cama. Imagens começam a se formar em minha mente, estou quase sonhando quando sou acordada pela tosse, ou pelo ronco de Vincent, ou o choramingar de Enzo, ou ainda Jasmim, que quer fazer xixi… Tudo se mistura em uma bruma confusa. Alterno ondas de frio e calor, troco duas vezes o pijama encharcado de suor. Em meus delírios, vejo Chantal debruçada na janela e caindo no jardim. Não conto para ninguém, mas o sonho me trás uma satisfação alegre. Acordo da noite tumultuada com um sorriso nos lábios. Nada como uma compensação imaginária para suportar o campo com a sogra.

 

6 Comments

  1. Gaëtan Dénos diz:

    Amei a tua escrita e história.. passei anos nessa situação e hoje creio que esse “fardo “ é culturalmente francês.. nunca entendi a minha sogra e muito menos as mulheres aqui… eu sou brasileira, nasci no Rio de Janeiro e mora na França há 10 anos.. espero poder continuar te lendo e trocando ideias.. Bisous e fique firme !!💖

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    1. Nina Said diz:

      Obrigada pelo seu comentário Daniele, estou tão feliz com os retornos. Você passou anos essa situação, me conta, como resolveu? Eu também não entendo minha sogra, porque sendo má assim ela acaba se isolando… eu fiquei muitos anos tentando agradar, mas não adiantou nada… beijos pra vc tb é valeu pelo carinho 💕

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      1. Dani Dénos diz:

        oi Nina!! hehe nao sei se me livrei totalmente, afinal, eu tenho um filho com o filho dela, o “favelinha”, portanto, eu não fui criada na favela.. mas, vida que segue com esses constrangimentos agudos e discriminatórios que elas utilizam “day by day”.. “la classe française”, não é mesmo ? 😉 bisous, querida.. ❤ !

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  2. Daniele Dénos diz:

    Oups estava falando com
    Meu marido e te escrevendo , daí sem querer eu coloquei o nome do dele, eu me chamo Daniele!

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  3. sumidão diz:

    Uau. Esse tipo de leitura não tem preço!!! Eu amo a vida do que vc escreve! Me prende mto! Parabéns!!! Escreva um livro por favor. Sério.

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    1. Nina Said diz:

      Obrigada querido, você é muito generoso nos seus comentários!

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