Umas três semanas atrás, recebi num grupo WhatsApp um vídeo em que o médico francês Didier Raoult defende o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina, seu derivado menos tóxico, no tratamento do Covid-19. Pra quem não conhece, Raoult é um senhor de cabelos e barba longos e brancos, uma figura que pela própria aparência de hippie gera simpatia nuns e desconfiança noutros. Aqui na França a polêmica em torno da cloroquina se cristaliza na pessoa desse que é, apesar de tudo, um dos médicos infecciologistas mais respeitados do mundo. Pra complicar as coisas, Raoult mora e trabalha em Marseille, contestando assim o monopólio parisiense do conhecimento.
O vídeo em que Raoult fala sobre a cloroquina foi enviado por um professor de yoga, acompanhado de um comentário algo delirante:
“É evidente que quando um científico reconhecido fala, deveríamos escutá-lo. (…) Podem me chamar de teórico do complô, mas eu vejo apenas homens de negócio e pseudocientíficos em busca de notoriedade, lobbies farmacêuticos em busca de lucro e políticos querendo controlar as massas, caminhando para ditaduras aceitas por pessoas gastas em todos os sentidos do termo”.
Li o comentário acima com uma certa preguiça e não me dei o trabalho de abrir o vídeo. Quando uma pessoa escreve “podem me chamar de teórico do complô” ou algo que o valha, as chances dela estar de fato sob o charme desse tipo de narrativa são imensas. Teorias do complô são extremamente sedutoras. Além de fornecerem uma explicação límpida para fenômenos complexos, elas nos dão a sensação de que somos inteligentes, pois enxergamos algo que quase ninguém está vendo. Situações de incerteza como a pandemia que estamos vivendo são terreno fértil para o complô. Classifiquei então a polêmica da cloroquina na mesma gaveta que as mensagens que recebi alertando para um plano de dominação mundial vindo da China.
Até que percebi que meu marido andava resmungando pela casa, inconformado pelo fato do Macron não liberar o uso da cloroquina como auxiliar para o tratamento dos pacientes com Covid-19. Como ele parece achar fascinante seguir os diferentes protocolos de teste sobre a cloroquina associada à outros remédios (em Marseille, Angers e no projeto Discovery), dessa vez decidi prestar mais atenção no assunto e pedi que me explicasse seu ponto de vista. O que ele fez na mesma hora, feliz com a ocasião de compartilhar com outro ser humano o conhecimento adquirido através de muitas horas de leitura compulsiva. Desde o começo o marido quer discorrer sobre a epidemia comigo, mas eu não sinto a necessidade de acompanhar de perto o número de mortos e pessoas em tratamento intensivo em todos os países do mundo. Pra mim esse assunto é inútil e ansiogênico. Na primeira semana do confinamento, cada vez que ele vinha me falar sobre a forma de tal ou tal curva, ou do impacto do confinamento sobre as diferentes populações, eu respondia, irônica, “acabou o momento coronavírus?”. O coitado acabou prometendo que não tocaria mais no assunto comigo…
Voltando à cloroquina, a primeira coisa que ele me disse foi que talvez a única idosa que esteja protegida do coronavírus na França é minha sogra, porque ela toma esse remédio todos os dias para sua poliartrite! Vaso ruim não quebra. Depois me explicou toda a controvérsia em diversos pontos, que prefiro não infligir a vocês. Me contentarei em dizer que ele acabou me convencendo de que o Macron não estava mandando bem, se metendo em decisões que cabem aos médicos tomar. Por isso achei um pouco superficial quando recebi, em outro grupo WhatsApp, um meme gozador, dizendo que “para a cloroquina fazer efeito, tem que ser ingerida com dois goles de água do Rio Jordão”. Não estava a par das dimensões da polêmica no Brasil, mas não foi necessário muito esforço para compreender que o Bolsonaro estava preconizando a cloroquina para o tratamento do Covid-19, como Trump havia feito duas semanas antes dele.
Foi então com um certo incômodo que redigi, nesse grupo, os argumentos do meu marido, com a intenção de disponibilizar para pessoas queridas no Brasil a versão francesa da história. Depois fiquei pensando… que loucura, na França as pessoas acusam o Macron de não liberar o uso da cloroquina, um remédio barato, em prol dos laboratórios farmacêuticos, que em breve lançarão vacinas e tratamentos caros. No Brasil as pessoas se indignam porque o Bolsonaro promove o uso da cloroquina, cujos efeitos colaterais podem ser importantes, para suscitar uma esperança cega (e que, diga-se de passagem, evacua completamente a ideia fundamental de que se os hospitais não podem acolher todos os pacientes, os médicos deverão escolher quem salvar, como aconteceu na Itália). Em cada um dos dois países, o uso do mesmo medicamento para o tratamento da mesma doença deu lugar a duas visões opostas, que representam tanto uma quanto a outra a desconfiança dos poderes públicos.
O fato dos meus amigos brasileiros enxergarem a cloroquina como um remédio de charlatão não tem nada de surpreendente. Por que eles deveriam confiar numa solução vinda de um homem que, desde o começo dessa epidemia, não deu uma bola dentro? Uma das grandes dificuldades que o brasileiro tem vivido é a de navegar num barco sem capitão. Como confiar num presidente que mente? No Brasil, a sensação é de que está nas mãos da sociedade civil decifrar as informações que os líderes políticos permitem chegar ao seu conhecimento e agir por conta própria. Na França, por outro lado, as pessoas estão habituadas a escutar suas lideranças e refletir sobre o que dizem, ainda que depois ajam como julgarem melhor. Desde o começo da epidemia, elas assistem religiosamente os pronunciamentos do presidente e do ministro da saúde. Aqui, o ressentimento em relação ao Macron é proveniente sobretudo da sua incapacidade de agir com eficácia, de tomar decisões rápidas e certeiras, num contexto novo e que gera insegurança.
O próprio da ciência é estar aberta à discussão crítica, à diferença dos pseudo-saberes, que sempre contornam o debate. Ainda não existe uma resposta certa quanto ao uso da cloroquina no tratamento do covid-19, talvez daqui a algumas semanas conheceremos melhor a relação benefício-risco. Pelo momento, sei apenas que, quando a ansiedade baixa, o melhor a fazer é respirar profundamente e lembrar que tudo passa, os políticos passarão, nós passarinho.
Adorei Amanda querida, bom de ler. Houve um detalhe que senti falta, o Trump é um dos sócios da fábrica que produz Cloroquina, nos Estados Unidos. Bolsonada, como o seu canalhavírus predileto faz esse remédio acontecer aqui no Brasil, para tornar o seu chefe mais gordo ainda. E é claro, ele também ganha com essa epidemia, fazendo todo mundo sair da quarentena contrair o vírus e ter que tomar a cloroquina, simples assim. Quanto mais infectado mais ricos ficam. Abraço grande e vamos que vamos.
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