No primeiro sábado do confinamento, às nove e meia da manhã, a campainha tocou. Estranhei, não havia comprado nada pela internet e normalmente ninguém bate na nossa porta. Ainda estava de pijama e descabelada, deixei o marido responder.
De soslaio percebi que se tratava de policiais. Fiquei curiosa, o que a polícia estaria fazendo aqui num sábado de manhã? Estendi o ouvido na direção da porta e ouvi meu marido argumentando, num tom frio mas civilizado, que nossos filhos não fazem mais barulho do quê as outras crianças. Olhei para os dois, que têm quatro e sete anos e nesse momento brincavam tranquilamente no quarto. É verdade que mais cedo eles tinham ido do quarto até a cozinha, ou talvez da cozinha até a sala, não me lembro mais, correndo, como é corriqueiro as crianças pequenas fazerem, mas aquela era uma manhã calma, sem nenhum evento extraordinário.
Senti o sangue ferver. Vouf, acendeu em mim um fogo poderoso, como a trempe de um fogão quando o gás fica ligado antes de conseguirmos acender o fósforo. A filha de Iansã acordou. Com as bochechas quentes entrei na conversa, foda-se o pijama, foda-se os cabelos emaranhados. Qual não foi minha surpresa ao constatar que os policiais eram mulheres. Uma jovem, esguia, morena clara, rabo de cavalo alto, nem um fiozinho fora do lugar, maquiagem vamp, cara de poucos amigos. Tensa. A outra mais ou menos da minha idade, negra, redonda, mais baixa do quê alta, cabelos trançados e presos, adornados com pecinhas de metal dourado que me chamaram a atenção, achei o penteado bonito. Essa não parava de falar.
Tentei explicar que o prédio é velho e mal insonorizado e que nossos filhos não haviam feito nada demais. Meu marido tentava explicar que tinha certeza que fora o vizinho do terceiro andar, um jovem arrogante e intolerante que semeia discórdia no prédio desde que chegou, há mais ou menos um ano, quem as havia enviado. Mas ela não ouvia. Na verdade ela não estava nem aí pros nossos argumentos, ficava só repetindo que as crianças faziam muito barulho. Eu estava me dizendo que obviamente aquelas mulheres não eram mães quando ela soltou a seguinte pérola: Tenho três filhos, eles não mexem, não fazem nenhum barulho. E emendou dizendo que em período de confinamento precisamos respeitar os vizinhos.
Hello? Quem está desrespeitando quem? Em pleno confinamento o jovem de boné e calça baggy que mal cumprimenta e se acha a pessoa mais cool do mundo manda a polícia na nossa porta às nove e meia da manhã porque quer dormir até tarde e somos nós, que fazemos das tripas coração para ocupar duas crianças o dia inteiro dentro de um apartamento de 70 metros quadrados, que estamos errados? Explodi.
Não é porque você está de uniforme que tem o direito de gritar com a gente e cortar nossas frases, respondi com a voz alta, um pouco surpresa com minha própria ousadia. Ela se surpreendeu ainda mais, e levantou a voz mais alto também. Não me deixei intimidar. O marido me apanhou pelos dois braços e me tirou da frente delas, como se eu fosse um móvel. Foi minha vez de ficar incrédula. Voltei pra frente da porta, com raiva. Ele repetiu a operação. Isso aconteceu umas três vezes, até eu dizer, recuperando algum sangue frio e olhando nos olhos dele : você pode parar? Daqui a pouco elas vão achar que apanho em casa. Os três me olharam com espanto. As crianças se aproximaram. A policial de rabo de cavalo disse que eu estava assustando meus filhos. Respondi que não era ela quem iria me dizer como educá-los. A outra se abaixou e começou a explicar-lhes que eles não podem fazer barulho. Berrei: você não dirige a palavra aos meus filhos! A coisa desandou…
Num dado momento convidei-as a entrar e constatar o barulho que as tábuas de madeira fazem quando andamos normalmente no apartamento. O marido reagiu na hora, quase em pânico, imaginando os minúsculos coronavírus saindo daquelas botinas pretas e se espalhando no interior do lar. Mas na hora em que o trem saiu dos trilhos eu já não suportava mais olhar aquelas mulheres destituídas de qualquer noção de sororidade. Fui despedindo e fazendo um movimento de fechar a porta. Antes de partir, a policial mais velha ameaçou: vou fazer uma ocorrência contra vocês, relatando o que vi aqui esta manhã. As duas estavam descendo as escadas quando mostrei o dedo do meio pra elas.
O marido me olhou espantado com o gesto. Você pode ir pra prisão por isso. Elas estavam de costas, não viram! Ele, que ficou me tirando à força da frente delas, agora me tratava como se eu fosse a louca da casa. Quando disse isso, ele explicou que tinha ficado com medo de eu voar em cima delas. Claro que nunca teria feito isso. Apesar de que uma vez, muitos anos atrás, dei um tapa na cara de um segurança de boate que me desrespeitou e depois entrei correndo dentro de um taxi, porque perco o sangue frio mas não perco o instinto de sobrevivência.
Não sei o que é mais incrível, que o vizinho tenha se permitido chamar a polícia porque estava incomodado com os passos das crianças num sábado de manhã, ou que a policia tenha ido até nossa casa por isso em plena quarentena, quando deveria estar na rua impedindo as pessoas de desrespeitarem o confinamento. Meu marido, que sempre diz que não devemos discutir com idiotas, pois nos tornamos tão idiotas quanto eles, caiu nessa armadilha. E eu, que pratico yoga há quase vinte anos e me considero uma pessoa sensata, agi com um despreparo fenomenal. Parece que a pandemia chegou acentuando tudo. Na Itália, a cantoria; na Espanha, a solidariedade; no meu bairro: o egoísmo do vizinho, a idiotice das policiais e minha loucura!
Já é meu blog favorito ( o único que sigo).
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😘
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Gostando muito do blog! Acredito que escrever vai ser um grande aliado pra vc nesse momento. Posta os outros textos tb!
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Que bom Flavia, obrigada pelo retorno 🙂
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Que sufoco! O melhor seria se mudar ou fazer um abaixo assinado contra o inquilino (cool)! Rsrsrs
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Estou contigo, querida. Não está fácil pra ninguém!
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Amando o seu blog!!! Quando mexem com minhas filhas também viro bicho, saio completamente do meu estado racional 🙈🙈🙈🙈
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Que delícia, obrigada pelo comentário! Bom saber que não sou a única que vira leoa pra proteger os filhotes 😁
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Nossa entendendo total a necessidade de estravasar na escrita este confinamento.
Escreve Amiga, escreve.
Estamos adorando.
Beijinho
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Obrigada Lua! Esse dia foi difícil mesmo… precisei de muitos dias para ter coragem de escrever sobre isso…
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Ameeeei . Conta mais história da sua sogra . A minha é tão cinica que se eu for escrever sobre ela, você iria cair e no chão de tão manipuladora .
Eu preciso saber como é essa relação de uma brasileira com a sua sobra francesa …
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Oi Lara, obrigada pelo comentário, fico muito feliz que você gostou. Estou achando maravilhoso receber retornos de outras mulheres na minha situação, me sinto menos sozinha. Mas tem como sua sogra ser mais cínica e manipuladora que a minha? Jesus Maria José 😱 não sei quando, mas em breve escreverei mais histórias com a sogra. Beijos e bon courage!
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